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Louvando o que bem merece

 

O Brasil é muito maior do que a Praça dos Três Poderes, palco dos podres poderes e seus canastrões ridículos

Feliz Ano Novo. Escolhi desejar aos leitores Feliz Ano Novo na pessoa de um artista brasileiro, cujo pai era paulista, o avô pernambucano, o seu bisavô mineiro, seu tataravô baiano e seu mestre soberano, Antônio Brasileiro. Feliz Ano Novo, Chico Buarque de Holanda, porque, quando se fala de felicidade no Brasil, a palavra vem muitas vezes associada ao seu nome, à inigualável obra que você nos legou e que nos dá a certeza, como dizia meu amigo e mestre arlequinal Darcy Ribeiro, que havemos de amanhecer.

Quem duvidar vá ver o filme de Miguel Farias Jr. que conta a vida desse homem, a aventura que a Estação Primeira de Mangueira pôs em cena, anos atrás, no esplendor da Avenida, o “Chico das Artes, boêmio, poeta Buarque, um gênio”. Sairá do cinema com a alma leve de quem celebra um Ano Novo com a certeza de que o Brasil há de dar certo e que, de certa forma, já deu quando produziu poetas, cantores e compositores entre os melhores do mundo, as canções que o povo todo canta, que eu começo e você termina porque são parte da nossa memória e patrimônio intangível. Chico é uma página luminosa do álbum de família do Brasil.

O que é preciso não esquecer porque esse é o nosso maior capital, o que ninguém pode roubar ou calar. A ditadura militar tentou e não conseguiu. O trio de pitboys que o interpelou de maneira agressiva e desrespeitosa na saída de um restaurante no Leblon atualiza essa tentativa frustrada. Não mereceriam, na sua insignificância, uma única frase deste texto não fossem eles a encarnação odiosa do que não quero mais ver no Ano Novo.

Desejo a todos — e trabalhemos para isso — que o ódio não abra suas asas mórbidas sobre nós. Que recuperemos a capacidade de aceitar as diferenças que marcam nossa cultura. Que da democracia se guarde o essencial, o dever de ter opinião e o direito de externá-la livremente. E a obrigação de respeitarmo-nos uns aos outros por mais que essas opiniões divirjam. Agressões e insultos são sintomas de intolerância, de apodrecimento político, da emergência de um espirito fascistoide.

Contra esse espírito malsão o país tem anticorpos. O Brasil é muito maior do que a Praça dos Três Poderes, palco dos podres poderes e seus canastrões ridículos, do que os bandos de pequenos fanáticos que, de um lado ou de outro, pouco importa sob que bandeira, tentam se impor pela violência. Não, a política comporta adversários, mas não pode ter o poder de nos tornar inimigos. Brasília encobre com as modernas linhas dos palácios o que há de mais esclerosado no país.

Um mistério brasileiro é a coexistência de políticos execráveis com artistas excepcionais. Quem tem algo a propor sobre um futuro que nos possa re-unir? O país está pedindo uma nova aquarela do Brasil que abra a cortina do futuro, passando em revista tudo de que possamos nos orgulhar, o que temos vontade de cantar e defender. “Louvando o que bem merece, deixando o ruim de lado”.

É preciso repetir como um mantra que o Brasil não é essa política desavergonhada. Espero que possamos, no meio do turbilhão que estamos atravessando, guardar a lucidez sobre os nossos fundamentos culturais, bens mais valiosos do que o PIB.

A sociedade de mercado atribui um preço a todas as coisas e torna invisível o que não anuncia seu preço. O Brasil mestiço que, ainda marcado pelas sequelas da escravidão, com todas as suas abissais injustiças, tenta corrigir-se e não perde o orgulho de sua diversidade foi a nossa admirável escola de tolerância à diferença. Mestiço não só na pele, também nas origens, nos sobrenomes, nas culturas que atravessaram os mares para aqui se tornarem brasileiros. Quando mundo afora as fronteiras se fecham ao estrangeiro, o melhor do Brasil pede a palavra e conta a história de uma brava gente que aprendeu a acolher, transformar quem era o outro no mesmo, um brasileiro.

Esse brasileiro que se reconhece nas canções de Chico Buarque, na voz de Maria Bethânia — e a fonte a cantar, chuá chuá, e a água a correr, chué chué — na alegria de viver, nos carnavais, nas multidões de todas as raças, todos de branco, fazendo à Rainha do Mar o primeiro pedido do Ano Novo, enquanto lágrimas de ouro caem nas ondas. No barroco de Bia Lessa, no olhar de Sebastião Salgado, na nossa loucura posta em cena na Avenida pela loucura beleza do Joãozinho Beija Flor. O Brasil que celebra com carinho e respeito os cem anos da ilustre Cleonice Berardinelli.

É esse o país que nos irmana. Que todos os deuses do Brasil, neste ano, iluminem sua brava gente e nos livrem da peste da intolerância.

O Globo, 02/01/2016