Sou carioca, mas tenho fortes raízes capixabas. Fui sempre a Linhares desde pequena. Antes mesmo de haver a ponte sobre o Rio Doce, cruzávamos as águas em canoa escavada num tronco. Os carros esperavam a travessia de balsa, em longa fila na estrada quase engolida pela majestosa Mata Atlântica. Saíamos de canoa a caminho do Rio Pequeno, o São José, íntimo e cristalino, que desaguava no Doce e nos levava à sua nascente, na Lagoa Nova, espelho líquido a refletir o céu e a mata. Apenas uma das lagoas deslumbrantes da região, como a Juparanã e a das Palmas, ligadas por riachos que ajudam a compor o grande rio. E suas grandes árvores, bromélias, epífitas, arbustos. Seus pássaros, macacos, pacas, capivaras, tatus, veados, jaguatiricas, onças. Já evoquei esse paraíso, no romance “Tropical sol da liberdade”.
O Rio Doce é parte do tecido de minha vida. A notícia da catástrofe ocorrida com ele me abalou tanto que fiquei incrédula, à espera de algum desmentido que não veio. Não era pesadelo. As notícias só confirmavam o horror. Agora o lamaçal da morte chega ao mar... Aos manguezais e recifes que fazem desse litoral um berçário.
Entre dor e indignação, alguns fatos se impõem à minha ignorância no assunto. Quer dizer que exportar minério e gerar riqueza para o país passa obrigatoriamente por criar rejeitos tóxicos a serem lançados nos rios? Precisam antes ser armazenados em barragens que destroem as matas e pavimentam a terra? Qual o limite? Até quando se espera que o veneno continue se acumulando por trás de uma barragem? Mineração não supõe apenas cavar a terra para ir buscar o minério? Ou algo como o trabalho numa pedreira?
Vamos descobrindo como fomos mantidos em criminosa inocência, a nos transformar em cúmplices silenciosos. Como é que nunca desconfiamos disso? Por que nunca nos contaram que esse era o preço a pagar?
Começa então a execração dos culpados, um dos esportes nacionais favoritos: a caça ao bode expiatório. Culpa da Dilma, que foi ministra de Minas e Energia. Culpa de Aecim, que foi governador de Minas. Culpa da empresa, que é gananciosa. Culpa do capitalismo, que é mesmo culpado de tudo. Culpa do Fidel, como ensinou aquele filme. Culpa de coxinhas e petralhas, de gregos e troianos. De todo mundo e de ninguém.
Tudo bem, quem tem culpa que pague. Mas não paremos aí. Quero tentar entender as responsabilidades, mais que as culpas. Culpado se arrepende (até com sinceridade), pede desculpas, é punido, e pronto. Responsabilidade é mais difuso e mais complicado. Recai sobre uma situação geral, construída há muito tempo. Tanto, que se faz uma espécie de acordo coletivo para esquecer. Em 2007 Lula, na Presidência, afirmou que, se pudesse, acabava com o Ibama porque a preocupação com os bagres estava atrasando hidrelétricas no Rio Madeira. Em 2009, voltou à carga — dessa vez tendo como alvo a perereca — em piadas chulas de duplo sentido. Dos conflitos de Dilma com Marina por questões ambientais estamos todos lembrados. Ser verde era ser ridículo e antipatriota. Legal mesmo é ser desenvolvimentista, e poder exibir slogan de propaganda do governo ao sobrevoar desastre em helicóptero.
Mas o Executivo não é o único leviano e irresponsável. O Congresso é pior. Cede a todo tipo de pressão, afrouxa os cuidados com o meio ambiente, cada vez permite mais desmatamento, protege menos os rios. Basta dizer que, se uma fiscalização houvesse constatado falhas graves na barragem ou no plano emergencial, a legislação em vigor não prevê a interdição da operação, apenas multa. Nada que um dinheirinho não resolva logo. Falta o Congresso elaborar todas as leis complementares nesse setor, coisa que há anos empurra com a barriga.
E quem fiscalizou? Como? Foi lá ver? Ou apenas conferiu documentos apresentados? Quem monitorou? Como? Sabe-se lá se havia areia misturada ao cimento para superfaturar? Dá para confiar? Há mais de 700 dessas barragens no Brasil, quase 400 só em Minas. Várias são de alto risco, agora ficamos sabendo. O número de fiscais é ínfimo. Há concursados esperando nomeação. Mas de aspones, assessores inúteis e sem concurso o país é recordista mundial. O Congresso até planeja construir um prédio novo para os seus. A sociedade deve gostar, porque elege e reelege quem trilha esses caminhos fisiológicos.
Dá nisso. Quem mata uma paca vai preso, crime inafiançável. Quem destrói todo um ecossistema, mata toda a fauna e flora, só paga uma multa. Que lei é essa? Que gente somos nós?
Francamente, não dá para apenas apontar e multar um único culpado. Este é o país que estamos fazendo. Uma criação coletiva. De consequências coletivas. Lembrando John Donne: os sinos dobram por todos nós. Um bando de gente desinformada que não sabia de nada. Como insiste agora em não ver a porcariada das praias do litoral carioca, com esgoto in natura avançando mar adentro. Ou assiste ao mosquito da dengue passar a ser também o da microcefalia.
É mesmo de desanimar. Talvez só reste chorar.