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Arte e personalidade

 

Toda arte tem linguagem, ou melhor, toda arte é linguagem. O pintor, o escultor, o músico, o poeta, todos eles se valem de uma linguagem específica com a qual se exprimem, criam suas obras.

Deve-se observar, também, que linguagem e significação não podem ser separados, razão pela qual os conteúdos são próprios de cada linguagem e, consequentemente, o que a música diz a pintura não diz; o que a poesia diz a música não diz. Noutras palavras, as linguagens são essencialmente intraduzíveis entre si.

Essa especificidade das linguagens artísticas, por sua vez, determina sua maior ou menor receptividade. É essa mesma especificidade que define a necessidade e a possibilidade do indivíduo que se torna criador de arte. Trata-se certamente de uma questão complexa, mas que, conforme percebo, está diretamente vinculada à natureza de cada linguagem artística e de cada personalidade criadora.

Como acredito que a arte, em lugar de revelar a realidade, a inventa, tem ela, segundo penso, a capacidade de encantar o leitor, o ouvinte ou o espectador, facultando-lhe o que se define como prazer estético. Isso se dá exatamente porque as artes são linguagens por meio das quais nossa concepção de realidade se enriquece magicamente, graças ao que a obra diz e que é mágico exatamente por ser intraduzível em qualquer outra linguagem.

Se, como disse, as linguagens artísticas são intraduzíveis entre si, tampouco quem ouve "Bachianas n°4", de Villa-Lobos (1887-1959), ou vê uma tela de Volpi (1896-1988), pode traduzir em palavras o que essas obras expressam. Disso resulta, consequentemente, a função da arte como enriquecedora da nossa visão da existência; de acrescentar ao mundo uma noite que só existe numa tela que o artista pintou.

Dessa magia, naturalmente, mais que todos, participa o artista, o criador da obra. E, se é verdade que o que ele expressa por meio dela só pode ser expressada ali e daquela forma, é porque a arte é uma linguagem e, por ser linguagem, suscetível de ser elaborada e recriada pelo artista.

Pois bem, daí decorre que é por ser linguagem que a obra de um artista –seja ele pintor, poeta ou músico– renova-se, muda, enriquece. Isso implica no domínio da linguagem específica de cada arte, domínio esse que caracteriza o trabalho de todo verdadeiro artista, seja ele um Da Vinci, um Mozart, um Mallarmé, um Drummond, um Eliot.

Não é imprescindível que todo leitor ou consumidor de arte tenha conhecimento dessa elaboração de que surge a obra, o que importa é que o resultado dela o toque, o comova, o deslumbre.

Essa é a razão por que me custa aceitar, como arte, expressões que não resultam da elaboração de uma linguagem. Melhor dizendo, custa-me aceitar como arte expressões que não constituem efetivamente uma linguagem.

Entenda-se bem, expressão tudo é: uma mancha, um traço, um ruído, um grito, qualquer coisa. Sentar-se imóvel numa cadeira, durante horas, é uma expressão, mas é impossível elaborar ou aprofundar tal manifestação, pelo fato mesmo de que não constitui uma linguagem. O mesmo pode-se dizer de quem amontoa lixo numa galeria de arte. Os autores de tais manifestações, por isso mesmo, estão obrigados a, aleatoriamente, lançar mão de qualquer objeto ou atitude e apresentá-los como obras suas.

Na verdade, por não serem resultado da elaboração de uma linguagem artística, necessitam estar num museu ou numa galeria de arte para se apresentar como expressão estética. Assim, casais nus no MoMa são mostrados como arte, mas se estiverem noutro lugar qualquer são apenas casais nus. E por não serem uma linguagem, as obras dessa linha necessitam serem explicadas verbalmente. De fato, como saber que um amontoado de latas de conserva é protesto contra o capitalismo? Só explicando, não? O resultado é o que aconteceu recentemente numa famosa galeria de arte italiana: o faxineiro varreu a obra ali exposta e a pôs na lixeira. 


Folha de São Paulo, 15/11/2015