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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Afonso Arinos de Melo Franco

Vosso ingresso nesta Casa obedece a uma tradição que lhe vem do início da vida. Na verdade, a Academia Brasileira, por ser de Letras, nunca foi exclusivamente literária. Aqui, desde logo, se seguiu o exemplo escolhido pelo nosso modelo, ou seja, a Academia Francesa. Sobre esta, um dos seus membros atuais, o Duque de Castries, publicou recentemente copiosa história, com o título pouco acadêmico, mas muito francês, de La Vieille Dame du Quai Conti. Nesse estudo, o leitor brasileiro, sobretudo o acadêmico, verifica o quanto a nossa Casa, já quase centenária, foi adquirindo, longe do exemplo modelar, uma personalidade bem definida, genuinamente brasileira. Mas é inegável que, num aspecto essencial, lhe foi parelha, desde o início da vida. Acolhendo, sempre, membros cujo destino transcorreu em áreas culturais, embora estranhas à atividade puramente literária, a Academia Brasileira secundou o modelo francês. Assim, podemos afirmar que a Vieille Dame du Petit Trianon, dentro da sua sede também historicamente francesa, seguiu o exemplo da Vieille Dame du Quai Conti.

A sessão inaugural da nossa Academia, ocorrida há 92 anos na data de hoje, é um exemplo. Presidiu-a o maior escritor puramente literário do País, Machado de Assis, que, aclamado Presidente da Casa, produziu breve alocução. Mas, como secretário-geral, discursou Joaquim Nabuco, cuja obra literária, biográfica e memorialística, não fica acima de sua ação política de parlamentar e de vitorioso combatente da Abolição. Recordemos também que, naquele inesquecível 13 de Maio, o próprio Machado de Assis, que se julgava incapaz de entusiasmo, saiu à rua, em carro aberto, com amigos, comemorando a Lei Áurea. E o presente orador se lembra de um tio, então estudante, que lhe contou haver visto, naquele dia de comunhão nacional, Joaquim Nabuco falando ao povo de uma janela do Paço da Cidade, povo que delirava de entusiasmada gratidão pela princesa Redentora. De resto podemos afirmar que a eloquência política, nos seus píncaros, confunde-se com a Arte Literária. Não precisamos procurar exemplos no grego Demóstenes ou no romano Cícero. Basta-nos a prata da casa para nos servir, lembrando o nome de Rui Barbosa. Algumas das suas mais belas páginas literárias são políticas, jurídicas ou linguísticas.
 
Referido o mais alto vulto da Política Interna Brasileira, poderíamos recordar outro companheiro da Academia que à Política se dedicou quase exclusivamente, embora no campo internacional: o Barão do Rio Branco, estadista da República das dimensões históricas de Rui Barbosa. O barão fixou no século XX os limites do nosso território, sem sair das suas salas de estudos. Assim completou o ciclo andarilho das bandeiras, magistralmente estudado por outro companheiro nosso, Afonso de Escragnolle Taunay. Outro escrito importante de Rio Branco foram as preciosas Efemérides Nacionais, escritas como jornalista, quando da fundação do Jornal do Brasil, e posteriormente editadas pelo Itamarati, em cuidadosa edição preparada por outro companheiro nosso, Rodolfo Garcia, que tivemos por amigo e mestre. As Efemérides são um esforço de pesquisa, mas sem cunho propriamente literário. A única obra propriamente literária do barão foi a biografia do pai, Visconde do Rio Branco. Mas, no gênero de Literatura Histórica, não se compara à biografia imperial de Nabuco sobre o pai, nem talvez a outras biografias republicanas.

Para encerrarmos este assunto de acadêmicos ilustres, não primordialmente homens de Letras, podem ser lembrados dois juristas eméritos, Pedro Lessa, famoso juiz do Supremo Tribunal, e Clóvis Beviláqua, o maior civilista brasileiro. Meu pai, que integrou na Câmara dos Deputados a Comissão dos 21, revisora do projeto do Código Civil de Clóvis Beviláqua, manifestava o respeito profundo que devotava ao mestre, pela sua pureza moral, saber científico e modéstia encantadora.

Vossa obra publicada, Sr. Oscar Dias Corrêa, é daquelas que, elucidando os assuntos de que trata, revela, também, a personalidade do autor. Ela se distribui, na maior parte, pelas vertentes do magistério superior, das assembleias legislativas, das decisões judiciais e, mais recentemente, do Poder Executivo. Mas nunca o homem de letras deixou de se manifestar na vossa atividade mental. Um exemplo comprobatório é o vosso estudo sobre Dante, inserto no livro Vultos e Retratos, estudo que, apesar de breve, revela seguro conhecimento da vida e da obra do poeta universal. Neste ponto, torna-se oportuna a referência ao memorável trabalho do nosso patrício mineiro Cristiano Martins, com sua histórica tradução, em versos, de toda a Divina Comédia, precedida da biografia do poeta muito esclarecedora sobre a vida política da Itália medieval, da qual Dante participou, bem como acrescentada de centenas de notas elucidativas sobre o difícil conteúdo do texto, cheio de alusões e referências a fatos e pessoas. É lamentável que essa obra literária de Cristiano Martins, trabalho acolhido e editado pela Universidade de São Paulo desde 1976, não haja encontrado a repercussão que merece.

Outro trabalho inserido em vossa obra é o romance panfletário Brasílio, publicado em 1968. Brasílio é como um pós-escrito, em prosa, das Cartas Chilenas de Tomás Antônio Gonzaga. Como se sabe, o poeta inconfidente, o suave e arcádico Dirceu das liras a Marília, transformou-se no embuçado Critilo da sátira mais famosa da nossa Literatura. Desejamos relembrar, aqui, a pessoa de outro patrício, Afonso Pena Júnior, membro desta Casa e nosso querido mestre, o qual, em trabalho ainda não publicado e que guardamos como afetuosa oferta dos filhos, reestudou brilhantemente a tese, hoje vitoriosa, da presença de Gonzaga na misteriosa figura de Critilo. Ligado ao assunto é de se recordar outro produto da Cultura Mineira, o primoroso estudo biográfico de D. Maria Doroteia Joaquina de Seixas, a Marília de Gonzaga, retratada pelo seu parente Professor Tomaz Brandão. E, por falarmos na Marília de Vila Rica, não esqueçamos que Bocage cantava outra Marília, de Lisboa.
 
As sátiras políticas não são raras entre nós. No governo de Venceslau Brás, o paulista Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, sob o pseudônimo de Juó Bananére, publicou um panfleto em verso, numa espécie de salada linguística ítalo-brasileira, sob o título La Divina Encrenca, em que alvejara os maiorais da época, inclusive Pinheiro Machado. Antes deste, já havia surgido outro panfleto político, versificado, o Antônio Chimango do gaúcho Ramiro Barcelos, sob pseudônimo de Juvenal, atacando o inamovível presidente do Rio Grande, Borges de Medeiros. Desde a aurora da República, havia lutas incessantes e bravias entre os partidos rio-grandenses, chimangos e maragatos, envolvendo patriarcas como Júlio de Castilhos, Silveira Martins, Pinheiro Machado ou Assis Brasil, lutas extensivas à geração seguinte de Getúlio Vargas, Flores da Cunha, Pedro Moacir, João Neves da Fontoura, Oswaldo Aranha, Batista Luzardo. Perdoai-nos se cedemos a outra recordação pessoal. Certa tarde, quem vos fala foi levado pelo pai à casa carioca de Artur Bernardes, situada pelos lados da Rua Conde de Bonfim, onde o ex-presidente estava em conferência com Borges de Medeiros, também afastado do governo do Rio Grande. Governo em que se mantivera graças à peculiar Constituição estadual gaúcha, ditatorial e positivista. Já Aristides Milton, no seu conhecido estudo sobre a Constituição republicana de 1891 escrevia em 1898: “A Constituição do Rio Grande do Sul contraria quase todos os preceitos da nossa lei constitucional.” O inconformismo gaúcho conflui na patética biografia do honrado Borges de Medeiros. Voltando ao dia referido, lembramos que Artur Bernardes, sempre muito polido, apresentou-nos a Borges de Medeiros qualificando-nos de “nosso jovem colega”, pois havíamos terminado o curso de Direito. E, enquanto os dois caminhavam para a sala vizinha, sussurrei a meu pai que logo me cortou a palavra: “chamou-me de colega deles. Serei tirano?”

Vossa obra publicada, Sr. Acadêmico Oscar Dias Corrêa, percorre com profundidade e mestria os territórios do saber, derivados da cátedra universitária e do assento no Supremo Tribunal Federal. O ensino jurídico foi exercido nas Universidades de Minas Gerais e do Brasil. Para esta última, traduzistes e anotastes um livro de conhecido professor da Universidade de Paris. À Universidade de Minas, submetestes a tese de candidato à cátedra que aproveita eficazmente ao leitor, mesmo quando não especialista na matéria, visto que constitui introdução abrangente e crítica da Ciência Econômica, entre nós tão posta em risco pela falta de Ciência Política. Mesmo para um estranho aos estudos econômicos, essa introdução abre perspectivas esclarecedoras sobre problemas políticos e jurídicos, inclusive os que tanto nos inquietam no Brasil de hoje.

As cátedras e a judicatura são fases complementares da vossa profícua existência, nas quais as tarefas, quando bem cumpridas, de certo modo se confundem. Ao ensinar estudantes universitários, o professor está sempre julgando. Mas, ao julgar feitos jurídicos, sobretudo na Corte Suprema, o juiz está frequentemente ensinando. Essa situação se manifesta claramente na história da Corte Suprema dos Estados Unidos, conhecida por todos os cultores do Direito Constitucional.
 
A Corte Suprema e a tradição política bipartidária são as colunas mestras do governo presidencial dos Estados Unidos, principalmente o papel político da Suprema Corte, tomado no melhor sentido da palavra. O fracasso do Presidencialismo no resto do mundo decorre, provavelmente, da ausência desses dois elementos que dominam a política americana desde a vigência da Constituição de Filadélfia. Nossa firme convicção parlamentarista decorre, principalmente, da ausência em nosso País das duas instituições bicentenárias nos Estados Unidos: o bipartidarismo e a Suprema Corte. Mas lá mesmo, nos Estados Unidos, o princípio da independência dos Poderes tem levado a governo de crises, até mesmo a crises desastrosas. Por essa razão é que, hoje, nos Estados Unidos, manifestam-se opiniões parlamentaristas. Os governos infelizes de Nixon, Carter ou mesmo Kennedy têm suscitado reações significativas, na recente Literatura Política, como se vê em dois livros de grande sucesso, The Imperial Presidency [A Presidência Imperial] do prestigioso professor Arthur Schlesinger, publicado em 1976, e o recente estudo do mundialmente conhecido senador Fullbright, editado no corrente ano de 1989, e denominado The Price of Empire [O Preço do Império]. Desse trabalho, destacamos o seguinte: “Sugeri, quando servia recentemente em uma comissão de estudos do nosso sistema constitucional, que deveríamos considerar o princípio da separação de poderes e marcharmos para a adaptação de certos processos do sistema parlamentar.”

Convém insistir: essas palavras recentes provêm de um respeitado pensador político e senador dos Estados Unidos da América.

Sobre o assunto do papel do Supremo Tribunal Federal no Brasil, do qual fostes destacado membro, escrevestes livros que contêm valiosos ensinamentos.
 
Há mais de vinte anos, publicastes uma contribuição crítica à Constituição de 1967 em que estudastes em pormenor aquela difícil fase na qual o Presidente Castelo Branco tentou evitar o desbordamento do militarismo ditatorial, direcionando-o a uma solução democrática. Sem entrar em pormenores lembraremos que, no Senado, produzimos enérgico discurso contra o capítulo do projeto inicial, dedicado a definir os direitos e garantias individuais. Tomando conhecimento do discurso, o Presidente Castelo enviou dois amigos deputados, Nilo Coelho, de Pernambuco, e Ruy Santos, da Bahia, para solicitar a quem vos fala que fizesse para o dia seguinte um projeto do capítulo, o que foi feito e remetido ao presidente em palácio.
 
No parágrafo 120 do vosso livro, reconheceis generosamente as boas intenções do esforço, mas logo acentuais a fragilidade da sua aplicação, quando mostrais a insídia do artigo seguinte, onde se dizia que “a lei estabeleceria os termos em que os direitos e garantias individuais seriam exercidos”.
 
Disposição que colocava os direitos assegurados pela Constituição dependentes de lei. Ideia sem paralelo, cremos, no Direito democrático e devida, provavelmente, à insistência dos juristas ditatoriais que assessoravam o presidente.
 
Sucessivamente, em 1980 e 1985, publicastes dois estudos: o primeiro sobre o estado de direito e a emergência constitucional, e o segundo sobre a Constituinte e o Supremo Tribunal, com rico apoio bibliográfico e dados importantes sobre a jurisprudência do Supremo e seus fundamentos. O mais recente e mais completo desses estudos sucessivos é o livro O Supremo Tribunal FederalCorte Constitucional do Brasil. Esse estudo, sobre o qual seria inoportuno discorrer, revela vossas leituras, meditações teóricas, bem como experiência de ação em assunto fundamental para a democracia brasileira. Seguistes a tradição de Pimenta Bueno sobre o Conselho de Estado do Império, de Pedro Lessa e Castro Nunes, nos livros clássicos sobre o Poder Judiciário, com destaque para o Supremo Tribunal, o qual, segundo Pedro Lessa, não perde o caráter político por ser nomeado pelo presidente da República.

Sobre o assunto do poder político do Supremo Tribunal, existe um recente e notável livro de autor norte-americano, Politics and the Constitution in the History of the United States, no qual o autor, William Crosskey, pesquisa a força política da Suprema Corte na história da grande República.
 
Outro livro é o de Bernard Schwartz, sobre Os Poderes do Governo, traduzido em castelhano pela Universidade do México. Para Schwartz, a Constituição Americana, mantendo o mesmo texto, evolui e se transforma com o tempo, ou, segundo suas palavras: “A evolução da Constituição refletiu a evolução da própria sociedade.” Nós, no Brasil, nunca chegamos a alcançar tal benefício. A nossa República presidencial passou por choques históricos sucessivos, vai fazer um século; às vezes choques profundos nas consequências, embora superficiais nas causas, ou seja, quase sempre sem ligação com a evolução social. Em um século de sistema presidencial de governo, temos mais de meio século de ruptura da ordem democrática constitucional, sendo a situação social sempre agravada.

Sr. Acadêmico Oscar Dias Corrêa, senhores acadêmicos, minhas senhoras e meus senhores, perdoai ao orador o ter trazido para a serenidade desta cerimônia o eco das inquietações do nosso povo. Mas é que elas existem, são fundadas e os titulares oficiais da Cultura, que somos nós, não podem esquecê-las. Ocupais, ao lado da Poltrona do Acadêmico, a pasta tradicional da Política Republicana. A Academia tem, entre os seus membros, o chefe do governo e o seu ministro político. A Academia, como as demais instituições nacionais, formula votos fervorosos para que o Brasil saia ileso, unido e pacífico no seu próximo futuro.

Sede bem-vindo entre nós, Acadêmico Oscar Dias Corrêa.
   

20/7/1989