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Discurso de posse

INTRODUÇÃO

Senhores acadêmicos,
   
“Pierrot:
Loura?
   
Arlequim:

Como as espigas...
Como os raios de sol e as moedas antigas...”

Eis-me, ainda menino, talvez porque de cabelos louros, depois ruivos e agora grisalhos e escassos, ouvindo, em voz fraterna, há sessenta anos, aqueles versos de As Máscaras que tempos depois leria, em ânsia incontida, devorando, na biblioteca do Ginásio Mineiro, de Belo Horizonte, na ordem alfabética dos autores, nas estantes, os volumes encadernados, começando por Alexandre Herculano e Antonio Feliciano de Castilho para terminar em Stefan Zweig e passando por Menotti del Picchia.
 
Seria difícil avaliar o que me ficou dessa leitura afadigada, sem orientação, sem método, sem critério. Mas o certo é que mais bem que mal me fez ao conhecimento, atropelado embora, que me deu, cedo, muito cedo, dos vultos mais altos da Literatura de Língua Portuguesa. E, sobretudo, o discernimento para depois ler o que quis, quando e como quis, podendo separar joio e trigo, caçanje e vernáculo.
 
Nada me diria, àquela época, que, lendo As Máscaras e Juca Mulato, no encantamento que me causaram, viria a conhecer, em 1955, na Câmara Federal, em amorável convívio, o Menotti del Picchia, deputado federal pelo PTB, e que hoje me receberíeis, nesta Casa augusta, como seu sucessor na Cadeira 28!

Lembra-me perfeitamente – vejo a cena nas luzes da memória: discutia-se a chamada “Emenda dos Conselheiros”, que instituía, com os ex-presidentes da República, um Conselho Superior de assessoramento do presidente da República.
 
A UDN combatia o projeto. E, nesses casos, éramos os mais ousados – e a ousadia sempre foi meu fraco, disso sabeis! – escalados para o debate.
 
Chegou a minha vez: fui à tribuna e desincumbi-me da missão.
 
Ao descer para o Plenário, encontro no meio do corredor, caminhando em minha direção, o nobre deputado Menotti del Picchia, que me diz em tom quase fraternal: “Menino, quando você foi à tribuna perguntei-me: que que esse menino vai falar, depois de Capanema, Arinos, Baleeiro, Adauto, Lacerda. E sabe de uma coisa? Gostei de seu discurso!” Agradeci-lhe o cumprimento espontâneo e insuspeito, envaidecido e acanhado. E ganhei-lhe a estima e o direito à prosa, nos momentos em que um orador mais monótono ocupava a tribuna e me acercava dele para ouvir-lhe a palavra fascinante.
 
Só agora, passados todos esses anos, explico a acolhida, lembrando as circunstâncias do episódio, que revejo nos Anais da Câmara dos Deputados, na sessão de 4.8.1959.

Tendo iniciado meu discurso na madrugada desse dia, à tarde, prossegui. E, ao concluir, disse: 
    
A esse propósito, no debate, para encerrar nossas considerações, nada melhor para erguê-lo à altura em que poderia colocá-lo do que a inspiração de Dante. Lembraria à maioria aquele encontro fraterno que o imenso poeta, sob as vistas de Virgílio, teve, no Purgatório, com Sardello, de Mântua. Queixando-se então das vicissitudes da pátria querida, lançava esta imprecação:
    
     Ahi serva Italia, di dolore ostello
     nave senza nocchiere in gran tempesta
     non donna di provincie, ma bordello!
     .............................................................
     Cerca, misera, intorno da le prode
     le tue marine, e poi ti guarda in seno
     s’alcuna parte in te di pace gode. 
     

Senhor presidente, lembre-se, a maioria desta escrava pátria das aflições abrigo, nave sem timoneiro na tempestade imensa, não casta senhora, mas meretriz. Perscrute em torno as praias e as águas, sonde seu próprio seio se em alguma parte deste País reina a paz. Pense a maioria nos sacrifícios que está impondo à Nação Brasileira... 
    
Só agora, relendo o discurso, vejo que, com os versos do divino poeta, conquistara o poeta! Hoje, trinta anos depois, aqui lhe sucedo. Não vos direi que não sonhei este instante. Menos ainda que o não tive como meta, embora me parecesse, a princípio, inatingível, tanto que hesitei, no clássico namoro acadêmico – como lhe chamaria mestre Austregésilo de Athayde –, antes de pedir-lhe a mão.
 
Asseguro-vos, ao contrário, que tudo fiz para alcançar a distinção em que agora me confirmais. Nas Letras, em busca obstinada, tudo tentei e já o disse, há muito, e agora repito:     

De mim, escritor, tenho sido de muitas coisas e muitos temas, mas de pouca monta, sem falsa modéstia, que não a tenho, falsa nem real.

Mas poucos terão desejado, tanto quanto eu, ser escritor. Minhas tentativas – frustradas, direis – o provam. Tentei escrever sobre Ciência, por mais que a muitos, ainda hoje, se lhes arrepie o pêlo considerá-la a economia; sobre Direito escrevi, que a profissão me estimulou a isso; mas até sobre Literatura ousei e versos fiz torcidos, sofridos, custosos, cansados, tanto, tanto, que o sentimento se fatigou antes que tomasse forma poética; ensaios perpetrei, publicados e, para felicidade geral, inéditos muitos, sobre tudo; discursos rebuscados, gongóricos, quentes ou falsamente irônicos, pratiquei-os; e até ao Romance me abalancei, numa provocação que causou espécie e numa ousadia que raiou à temeridade.

Podereis talvez repetir Samuel Lover, quando ironizava: When once the itch of Literature comes over a man, nothing can cure it but the scratching of a pen.

Mais ainda vos confesso: meu orgulho itaunense, que só pede meças à minha mineiridade e à minha brasilidade, me açulou a coragem: afinal, por que não haveria de o meu torrão natal, tão nobre e tão querido, alçar-se ao mais alto Cenáculo Literário do País?

Cumpro agora essa vaidade suprema e paradoxalmente desinteressada, envergando o fardão que o berço amado, na voz de seu povo, em subscrição espontânea, me ofereceu e que, um dia, quando a mortalidade física ceder ante o inexorável – de que não fogem os imortais –, retornará ao seu convívio, no áureo desenho dos bordados vistosos, para extasiar os olhos das crianças, esticado no cabide ou no modelo, na vitrine cerrada, os vidros empoados, ou para que alguém, ausente o guia, pergunte quem era esse sujeito!

Quando, assim, a audácia subscreveu meu pedido de inscrição à vaga de Menotti del Picchia, como primeiro candidato inscrito, não aspirava a ocupar a Cadeira por títulos outros que a generosidade dos votantes pudesse vislumbrar: apenas os que, modesta mas permanente e infatigavelmente, buscara, no trato das Letras, de forma atrevida, em vários gêneros.

Antes me perguntara se poderia ansiar por este ingresso e tentar esta acolhida, considerando-me escritor: afinal, atrevera-me ao Romance, escrevera sobre Ciência, discorrera sobre Direito, ousara a Poesia, desafiara o Ensaio Crítico, a tudo me aventurara. E sempre com a preocupação da clareza e da vernaculidade, que são os atributos essenciais da boa escrita. E, se ao lado dessas tentativas literárias exerci atividades outras que a vocação me apontou, como a Advocacia, a Cátedra Universitária, a Política e a Magistratura, não creio pudesse a conjugação dessas linhas de minha vida com a aspiração literária, só por isso, diminuí-la ou invalidá-la.

Esta Casa, como o seu modelo, a Academia Francesa, foi sempre o abrigo, o grande e augusto abrigo dos escritores, ciosa do seu charme inexprimable observado por Duc de Castries, no seu La Vieille Dame du Quai Conti, e que se manifesta na reunião des hommes venus de toutes les disciplines, mais qui possèdent tous le privilége de l’intelligence.

E às Letras Jurídicas não poucos, antes muitos, buscaram este Sodalício desde a fundação. Logo na assentada primeira, Rui Barbosa, Clóvis Beviláqua e Rodrigo Octavio.

E vieram depois Lafayette Rodrigues Pereira, Pedro Lessa, Aníbal Freire, Ataulfo de Paiva, Cândido Motta Filho, Afonso Pena Júnior, João Luís Alves, Levi Carneiro, Rodrigo Octavio Filho, Hermes Lima, Pontes de Miranda, Pedro Calmon e outros.
 
Como a honraram cientistas como Oswaldo Cruz, Antônio Austregésilo, Miguel Couto, Aloísio de Castro, Silva Mello, Clementino Fraga, alguns nomes eminentes dentre muitos.
 
 Afonso Arinos, que hoje me recebe nesta Casa, como, em 1955, me guiava na Câmara dos Deputados, escrevendo sobre “Literatura e Pensamento Jurídico” (A Literatura no Brasil, direção de Afrânio Coutinho, v. 6, pp. 175 e seg.), após o exame “universal” do tema, lembra os muitos que aliaram ao conhecimento do Direito o trato literário. E, passando, entre nós, pela Inconfidência Mineira, ligada à Escola Mineira, com o Tomás Antônio Gonzaga do Tratado de Direito Natural e de Marília, vai a José Bonifácio, com as Poesias Avulsas e a “Ode aos Baianos”, e cita, então, além de outros, Odorico Mendes, Maciel Monteiro, Bernardo de Vasconcelos, Tobias Barreto, Nabuco, Rui, Alberto Torres e Clóvis Beviláqua. Raimundo Correia, Augusto de Lima e Vicente de Carvalho; diz: “foram poetas gloriosos e provectos juízes de Direito”; “Inglês de Sousa foi comercialista e romancista, Afonso Pena Júnior, civilista, poeta e crítico”. Conclui pela lembrança dos nomes de Gilberto Amado, Francisco Campos, Pontes de Miranda, Prado Kelly, Hermes Lima e Nestor Duarte, afirmando:
 
    
Assim poderíamos enumerar ainda uma série de contemporâneos cuja obra jurídica não se dissocia da literária. Alguns são melhores juristas que escritores, outros o contrário. Mas a tradição brasileira que fez nascer a Literatura e o pensamento jurídico como irmãos gêmeos, não se destruiu. Antes permanece. 
    
Na Academia Francesa, vê-se Sully Prudhomme ser sucedido por Henri Poincaré, celebrizado, antes de mais, como matemático, e a ele suceder Alfred Capus, autor dramático; após G. Goyau, historiador, P. Hazard, literato, e M. Garçon, advogado e escritor; Pierre Loti suceder ao pintor P. A. Besnard; a Rolland Mallet, poeta e economista, J. F. Boyer, bispo; a Francis Charmes, publicista, J. Cambon, diplomata, e L. Lacaze, almirante; a Leconte de Lisle, poeta, Henry Houssage, historiador, e a este L. Lyautey, marechal de França; a H. Ronyon, historiador, L. Barthou, o político; a P. de La Gorce, historiador, ao Duque de Broglie, físico; ao Marquês de Vogué, diplomata e arqueólogo, Foch, marechal de França; a Paul Valéry, poeta, Henri Monder, cirurgião; a G. Hanotaux, historiador, A. Siegfried, economista; a Al. Ribot, orador e político, Henri Robert, advogado; na sucessão que se marca não só pela categoria literária como pelo sinal inconfundível do talento, da inteligência.
 
E nesta Academia Brasileira a Filinto de Almeida segue-se Roberto Simonsen; e a este, Aníbal Freire; a Raimundo Correia sucede Oswaldo Cruz; e a este, Aloísio de Castro; a Afrânio Peixoto, Afonso Pena Júnior, depois Hermes Lima e, em seguida, Pontes de Miranda; a Alberto de Oliveira, Oliveira Viana; a Gustavo Barroso, Silva Mello; a Medeiros e Albuquerque, Miguel Osório de Almeida; a Machado de Assis, Lafayette Rodrigues Pereira; a Afonso Arinos, Miguel Couto.

Mas, caros amigos e já agora eminentes confrades, aqui estou eu, pela vossa escolha – hoje unanimizada, pois se esquecem, passado o pleito, números de votantes e votados –, irmanado ao vosso esforço em defesa da Língua e da Cultura, objetivo desta Casa Maior das Letras Brasileiras.

Tendes-me para desempenhar o ofício de escritor, de que cuidarei com zelo e apuro, tanto quanto me permitirem as forças e os anos, para ser digno de vossa companhia.

Destes-me, para honra minha, a Cadeira 28, Patrono Manuel Antônio de Almeida, escolhido por seu Fundador Inglês de Sousa, que, romancista, exerceu a atividade política e ilustrou as Letras Jurídicas; substituiu-o Xavier Marques, que ao Romance e à Poesia somou os estudos vernáculos e intensa atividade jornalística e política; e, por fim, Menotti del Picchia, poeta, ficcionista, jornalista, advogado, deputado federal, homem do seu século.
 
Diversos e iguais, permitem uma equilibrada visão da Literatura Nacional no exame da obra que nos legaram. 

Iguais, sobretudo, na marca indelével de brasilidade que se estampa nas Memórias de um Sargento de Milícias, concentra-se em O Missionário, expande-se no autor de Pindorama, até esplender na obra de Menotti, toda ela marcada do sentido nacional, permeada e ampliada pelo “universal” e pelo “humano”.

Múltiplos como homens de letras, nas atividades intelectuais e diversos no trato, na linguagem, na visão, faces do mesmo mundo, que cada um vê com os seus olhos da alma e sente com os pulsares do coração.
   
   
MANUEL ANTÔNIO DE ALMEIDA

De Manuel Antônio de Almeida, diria apenas que foi uma das minhas surpresas mais gratas nos anos de adolescência. Não há jovem do meu tempo que não tenha lido as Memórias de um Sargento de Milícias com a sedução que a simplicidade do romance exerceu sobre nós todos, cabeças feitas do Romantismo.
 
E que, diz Xavier Marques, com um “romance único, escrito com os dons singelos que a natureza lhe concedeu e a muita mocidade lhe não permitiu acrisolasse”, marcou posição na Literatura Brasileira, tanto que mereceu de Inglês de Sousa a honra de patrocinar-lhe imortalmente a Cadeira.
 
As Memórias, diz Josué Montello, “estão hoje em nossas Letras como algo de definitivo, senão como obra plena, pelo menos como obra viva, não envelhecida pelo tempo” (A Literatura no Brasil, II, p. 326).

Surgidas cinco anos antes de O Guarani (o romance de José de Alencar foi publicado, também em folhetins, no Diário do Rio de Janeiro, em 1857), as Memórias – publicadas no Correio Mercantil, de 27 de junho de 1852 a 31 de julho de 1853, sob o pseudônimo Um Brasileiro – fugiam inteiramente às variantes sentimental e indianista que impregnaram, de maneira avassaladora, a narrativa romântica brasileira contemporânea, como demonstram as obras de Macedo, Alencar, Taunay e Bernardo Guimarães. As Memórias de um Sargento de Milícias, ao contrário, filiavam-se à tradição espanhola do Romance de Costumes e da Novela Picaresca, em especial no Estebanillo Gonzalez, como aponta Montello.
 
Manuel Antônio contrariava a moda literária dominante e o gosto estético então estabelecido no Brasil, constituindo-se em obra verdadeiramente marginal na Literatura Brasileira dos Oitocentos. Assim, também, foi o primeiro livro que recolheu, com intenção de recriação literária, a linguagem oral e popular carioca, ao tempo em que se fez, no dizer de Mário de Andrade, “um tesouro muito rico de coisas e costumes da véspera da independência”, no que demonstrava conscientemente e “em grau elevadíssimo a bossa do folclorista”.
 
 Manuel Antônio de Almeida mostrava-se interessado nos hábitos e costumes das camadas populares da sociedade brasileira do início do século XIX, fixando, com objetivo e risonho realismo, os meirinhos, os barbeiros, as comadres e os compadres, os policiais, as rezadeiras, os cantadores de modinhas, os demandistas contumazes, os velhacos, achacadores e cafajestes, os gabolas e maledicentes.
 
Vale ressaltar a apreciação de Xavier Marques, ao empossar-se nesta Casa, em 17.9.1920: 
    
Essa ingênua galeria, quase totalmente desaparecida do cenário social sob os escombros de dous regimens, não teve observador mais arguto nem mais ladino intérprete de suas malícias, de seus enredos, de suas paixões vulgares. Tampouco lhe faltou o talento descritivo para pintar ou restaurar, com o auxílio da Crônica e da Tradição, onde já não era possível a observação direta, as cenas, as paisagens, as decorações em que ressurgem os personagens grotescos da curiosa burleta nacional, cada qual individuado, sem contudo exorbitar do costume, na lógica do seu temperamento.

Nessa opção pelos representantes mais populares da nossa sociedade de então, que ele trata com risonha bonomia e simpática tolerância, talvez resida a razão da adoção do pseudônimo que escolheu e que manteve mesmo na veiculação sob a forma de livro: Um Brasileiro poderá mesmo representar uma identificação de Manuel Antônio com o universo humano que recriou em seu romance.
 
Por outro lado, ressalte-se que sua atitude diante da obra literária era também diversa do esteticismo até certo ponto pedante e de transplantação cultural dominante no meio literário da época. Manuel Antônio de Almeida, como observa o ensaísta granadino Francisco Ayala, tradutor da edição em espanhol, “não adota a postura de um ‘literato’; não pretende, antes de tudo, ‘fazer Literatura’, forjar uma obra de Arte”. Por isso, viu-se o romancista, pelos seus contemporâneos e por longo tempo, acusado de escrever rude e negligentemente.
 
Vivendo em meio extremamente literário, como o do Romantismo Brasileiro, a que se sobrepunha ainda a tutela purista vigilante dos autores portugueses e daqueles brasileiros lusófilos, não teve Manuel Antônio a compreensão dos críticos e do público. Não perceberam eles, como protestou Mário de Andrade, que, atrás do aparente desleixo expressivo, existia um “vigoroso estilista”, em quem transparecia “algo do estilo espiritual de Machado de Assis”.

Com base, ainda uma vez, em Francisco Ayala, merece, salientada a observação de que o importante, o significativo, o que obriga a reconhecer um talento criador de primeira grandeza naquele jovem periodista despreocupado dos cânones estéticos e angustiado no seu trabalho por urgências econômicas, é a penetração com que se serve da linguagem oral e popular para preenchê-la de força literária, para dotá-la de qualidade poética na acepção mais ampla da palavra.

Por isso mesmo, o ensaísta espanhol não se furta a declarar que as Memórias de um Sargento de Milícias “apresentam uma inatacável harmonia; tamanha, que não contém hipérbole sua classificação de obra-prima” e admira-se por ver “tão madura perfeição nos escritos de um rapaz de vinte e um anos, [...] um espírito repleto de experiência vital, de uma experiência impossível, de uma maturação sem tempo”. E concluiu, de forma lapidar: “Um prodígio mais inconcebível que o da própria genialidade.”

Persistindo em sua sina de incompreensão crítica e de silêncio do público – após a morte do autor, em 1861, as Memórias somente conheceram oito edições até a eclosão do Movimento Modernista de 1922 –, o romance de Manuel Antônio viu-se rotulado, ainda que com intenção elogiosa, de realista e mesmo naturalista!, o que o faria anteceder de vários anos ao aparecimento dessa corrente estética na Europa... Este outro equívoco, para o qual muito concorreu a edição de 1900, da responsabilidade do sempre sério e quase sempre lúcido José Veríssimo, que assim o classificou no seu prefácio, resulta da impossibilidade desnorteadora de classificar o romance de Manuel Antônio de Almeida dentro das correntes estéticas da sua e das épocas seguintes. Em verdade, o chamado realismo das Memórias participa daquele componente intrínseco e inerente ao espírito humano de guardar relação com a realidade contextual. Esse componente, na narrativa ocidental, perpassa autores da Antiguidade Clássica, como Herondas, Apuleio, Petrônio, faz-se extremamente vivo na Literatura Picaresca do século XVI e início do século XVII, nos autores ingleses do século XVIII e está presente em obras de grandes nomes da Literatura Contemporânea, como García Márquez e Vargas Llosa.
 
A permanência de uma obra literária é estabelecida pelo diálogo que com ela estabelecem as sucessivas gerações de leitores e críticos, na busca das relações eletivas que o processo histórico impõe e que o condicionam. E desse processo inexorável somente as obras que trazem na sua estrutura os elementos determinantes conhecem a perenidade. Assim, as Memórias de um Sargento de Milícias, indiferentes aos juízos consubstanciados nos rótulos parciais e circunstanciais, alcançaram reconhecimento indiscutível a partir do Movimento Modernista de 1922, como atestam as sucessivas edições ocorridas desde então e as leituras que delas fizeram os mais representativos críticos, como Mário de Andrade, Astrogildo Pereira, Eduardo Frieiro, Marques Rebelo, Lúcia Miguel Pereira, Francisco Ayala, Eugênio Gomes, Paulo Rónai, Darcy Damasceno, Wilson Martins, Josué Montello, Antonio Candido, de variadas correntes da Crítica e da Historiografia Literária, mas todos acordes em ressaltar sua importância como obra precursora e de sempre renovada modernidade.
   
   
INGLÊS DE SOUSA

 Ao fundar esta Casa, Herculano Marcos Inglês de Sousa escolheu como Patrono Manuel Antônio de Almeida, “personalidade que é um diamante de várias faces”, diz Xavier Marques no discurso de elogio (Discursos Acadêmicos da ABL, v. V, p. 97): “Nela se desdobram, em invejável harmonia, os três aspectos que lhe possibilitam o viver integralmente para as necessidades de sua época: as faculdades racionais do culto da Ciência, as energias efetivas do homem de ação e a potência imaginativa do homem de letras.”

A escolha parece ter obedecido àquela ordem de ideias vigente ao fim do século passado, que entendiam as Memórias de um Sargento de Milícias como manifestação do estilo de época realista-naturalista. Inglês de Sousa é naturalista consciente, o primeiro, por direito de precedência e de fato, a adotar no Brasil os princípios estéticos da escola, no seu romance O Coronel Sangrado, de 1877, embora os manuais de História da Literatura Brasileira insistam na atribuição da primazia a Aluísio Azevedo e seu romance O Mulato, publicado em 1881, no mesmo ano das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
 
Não terá sido, entretanto, apenas a coincidência de ideologias literárias que Inglês de Sousa pensou ver entre sua obra e as Memórias de um Sargento de Milícias, o fator a presidir sua escolha tão afortunada.

Certamente, o autor de O Missionário, na sua intuição de artista criador, percebeu que os unia algo mais profundo, porque pessoal: a busca de retratar seu país e sua gente, apesar da distância geográfica que separa os cenários de seus romances.
 
Nascido no Pará, estudando no Maranhão e depois no Rio e em São Paulo, onde se bacharelou em 1876, aos 23 anos de idade; as Letras Jurídicas, a Literatura e a Política dividiram-lhe a preferência espiritual. E o talento e a cultura possibilitaram-lhe exceler nessas atividades em período de fastígio da vida nacional.

Como cultor do Direito, atingiu Inglês de Sousa a culminância do prestígio na banca de advogado e na presidência do Instituto dos Advogados Brasileiros, com participação ativa em congressos jurídicos, e mais ainda, com seu Títulos ao Portador, obra fundamental ao estudo do tema.
 
Há quase cem anos, admira-se que lhe desse tratamento tão seguro, com o conhecimento, não apenas da bibliografia da época, que invoca, como da realidade jurídica que apenas se entremostrava no Brasil, ainda que adiantada em outros países. 

Isso lhe aumenta a importância na Literatura Jurídica Nacional.

Na vida literária, assegurando-lhe a participação ativa na fundação desta Casa, impõe-se como contista, novelista e romancista que, ainda estudante, publica três romances: O Cacaulista (1876), História de um Pescador (1876) e O Coronel Sangrado (1877), para, afinal, consagrar-se com O Missionário (1888) e encerrar sua obra literária com os Contos Amazônicos (1892).
 
Na atividade política, deputado à Assembleia Legislativa de São Paulo, por iniciativa sua, cria-se a Escola Normal, cujo regulamento elabora (discurso de X. Marques, op. cit., p. 101).
 
Pouco depois é nomeado presidente de Sergipe e, em seguida, do Espírito Santo; e, proclamada a República, é convidado por Deodoro para governar o Amazonas e indicado para o governo de Pernambuco, ainda que não se efetivasse a escolha, terminando a vida pública como deputado à Câmara Federal.
 
Nesta Academia, redige o projeto inicial dos novos estatutos de 1897 e é o tesoureiro da primeira diretoria, presidida por Machado de Assis.
 
Aqui a explicação que Barbosa Lima encontra para que sua obra literária não tenha tido a repercussão que se impunha “pelas suas qualidades intrínsecas”. Pergunta-se, então, se nesse injusto silêncio não haveria um pouco dessa prevenção com que costuma o público receber as obras dos escritores que se não limitam a um gênero único de atividade espiritual (Revista da ABL, v. 88, p. 167).
 
E diz, citando Renan:     

Renan falava da má vontade com que se considerava a manifestação de mestria em domínios opostos, e poderiam estender o seu conceito a domínios apenas diferentes. A Crítica, ou o aplauso público, não parece favorecer os regimes poligâmicos, em matéria de atividade intelectual. Prefere, ou parece preferir, a disciplina e a rigidez da monogamia, o gênero único, a atividade uniforme, que valoriza e prestigia o conjunto da obra realizada.

Rodrigo Octavio Filho, fazendo-lhe o elogio, depois de traçar-lhe a origem portuguesa, “algarvia de quatro costados e já conhecida nas Espanhas muito antes do descobrimento do Brasil” (p. 170), e relembrar-lhe os ancestrais ilustres, fala do professor eminente “de saber e autoridade” e estuda-lhe a vida e a obra.
 
Conviria lê-la para alcançar a nobreza do caráter do jovem presidente de Sergipe aos 27 anos, depois presidente do Espírito Santo, deputado provincial por São Paulo e quase governador do Amazonas ou de Pernambuco.
 
Ou do festejado autor dos Títulos ao Portador no Direito Brasileiro, em 1898, do qual afirma que “se tornou clássico nas Letras Jurídicas nacionais” (p. 184).

É então – diz Rodrigo Octavio Filho – “várias vezes indicado para ministro do Supremo Tribunal Federal, cargo que recusa por motivos de ordem particular” (p. 184).
 
Além da obra que o celebrizou no Direito, organizou, a convite do ministro Rivadávia Correia, o nosso Código Comercial, transformando-o, na realidade, em Código Uno de Direito Privado, na antevisão da linha unitarista do Direito Privado, que tantos adeptos conquistou depois.

A obra literária é a de um precursor do Naturalismo, que surge sobretudo em O Coronel Sangrado e se firma em O Missionário.
 
A Crítica recebeu-a com aplausos e restrições, estas, sobretudo, quanto ao cenário que descreve e que a muitos pareceu superior às personagens. Resumiu-o Xavier Marques, nestas palavras: 
    
Prefiro ver nesse feitio do livro a prolixidade reflexa da terra, e na sua aparente desproporção uma admirável simetria com o meio e a humanidade – rari nantes – aí dispersa e apoucada. O autor escreveu largo e caudaloso, modelando-se assim o seu estilo pela imagem das coisas. Naquele reino da exuberância não é naturalmente, com o laconismo de expressões avaras, que se logra canalizar o volume das impressões.
 
    
De certa forma, explica-se não tenha tido a obra a repercussão que era de esperar-se: surge no mesmo ano de 1888, quando se publicaram A Carne, de Júlio Ribeiro, e O Ateneu, de Raul Pompeia.

Ainda assim, lembra Rodrigo Octavio Filho, João Ribeiro considerou-a “livro admirável, esplêndido e artístico romance”; e José Veríssimo, “um dos mais severos dos nossos críticos”, disse: “Não creio que o Naturalismo tenha produzido no Brasil obra superior a esta. Uma das melhores de nossa Ficção em Prosa” (p. 189).
 
Araripe Júnior, Olívio Montenegro e Lúcia Miguel Pereira louvam-lhe a obra. E Josué Montello, em trabalho sobre “a feição polêmica do Naturalismo Brasileiro”, estuda as influências que sofreu na linha naturalista, salientando:
    
O Coronel Sangrado é o que melhor revela os pendores de romancista em Inglês de Sousa. E é ainda aquele que confere ao seu autor uma preeminência cronológica, na história do Romance Naturalista em nosso País. Embora as duas outras tenham sido escritas sob o signo da mesma orientação, faltar-lhes-ia consistência literária para se afirmarem na categoria de marco do Naturalismo Brasileiro. Daí o destaque conferido a O Coronel Sangrado. Mas a verdade é que, mesmo neste romance, não há ainda o naturalista de intenção e processo, que só afloraria muitos anos depois com a experiência de O Missionário
    
Considerada a obra de Inglês de Sousa em conjunto, diz Lúcia Miguel Pereira (História da Literatura Brasileira, direção de Álvaro Lins, v. XII – Prosa de Ficção, de 1870 a 1920, J. Olympio, 1950, p. 156): 
    
Apresenta-se como um documento social, fixando aspectos vários da Amazônia, da Amazônia do cacau e da pesca, região meio selvagem onde a vida era sempre uma luta; luta do tapuio contra o proprietário que explora, na História de um Pescador; luta do mulato ambicioso contra o branco que não o quer considerar seu igual, no Cacaulista e no Coronel Sangrado; luta do indivíduo superior contra o meio mesquinho, no Missionário; em todos eles, luta do homem contra o homem e contra a natureza que o ameaça física e moralmente, pelos animais que o atacam, pela água que o afoga, pelo sol que o queima, pelo amolecimento que lhe derreia a energia. 
   
   
XAVIER MARQUES

Francisco Xavier Ferreira Marques ocupar-lhe-ia a vaga em 17.9.1920, recebido por Goulart de Andrade que, desde logo, assinalava: “Deveríeis ter notado tal ou qual afinidade entre o contador das Memórias de um Sargento de Milícias, o animador do Missionário e o revelador de Pindorama e O Sargento Pedro.”

E completa:     

O gosto da tradição e a maneira de bosquejar painéis em Sousa apuraram-se no mestre da Arte de Escrever, porque neste se sublinham as excelências de ambos, sem o menor sedimento de imperfeições, quanto ao contexto e à linguagem. A observação arguta, a experiência da vida, a fina sensibilidade e a pesquisa honesta do documento fizeram principalmente desses vossos livros históricos verdadeiras ressurreições, tanto a afabulação parece narrativa estilizada de códices, apenas com um latejo de sangue mais apressado e um rubor mais ligeiramente acentuado de emoção patriótica
    
E, como a Inglês de Sousa se fez reparo de que o cenário pintado pelo autor era amplo demais para a obra, também Goulart de Andrade considera o “cenário da epopeia da descoberta demasiado vasto para a chama que imaginastes da conquista e do povoamento”.
 
Falando sobre ele, Menotti chama-lhe “um dos preparadores e enunciadores da minha geração”, para, a seguir, analisar seu Canto de Amor à Bahia e examinar-lhe a obra de nacionalista, pensador, romancista e polígrafo, e o poeta.
 
Lembra-lhe o Canto de Amor à Bahia, dessa Bahia de que é o seu narrador, “seu homem de pensamento, seu poeta”, mas, ao ver de Menotti, “uma Bahia diferente, mais ática, menos temperamental” (Revista da ABL, v. 66, p. 159).

O nacionalista, em Xavier Marques, “não é xenófobo: é o homem compreensivo do destino humano e social da sua gente e o enamorado de sua terra, a Pindorama exposição universal de virgens belezas e de inéditas formas de liberdade” (p. 160).

Lúcia Miguel Pereira (op. cit., p. 273) comenta-lhe favoravelmente a obra, acentuando:
   
[...] sem ser propriamente um regionalista, pôs em seus livros todo o encanto que lhe inspirava a terra onde nasceu, encanto que o levou a perpetrar um incrível romance histórico, Pindorama. Quer compondo, nos dois volumes de Praieiros, o de contos e o da novela Jana e Joel, cenas e idílios em que a vida dos pescadores aparece cheia de poesia, quer estudando os hábitos familiares, o ambiente doméstico em que, como o Feiticeiro, se misturam negros e brancos, catolicismo e feitiçaria, sente-se que evoca com prazer a gente e as paisagens da Bahia, que as ama e as deseja fazer amadas. Talvez seja esse desejo que o leva por vezes a acentuar excessivamente a nota pitoresca, a estilizar certos quadros e personagens, isto é, a esbater-lhes as características próprias, a fim de os tornar mais belos, e, sobretudo, mais típicos; haverá, nas suas descrições, algum rebuscamento, e nas suas figuras humanas um tal ou qual convencionalismo. Mas, por não serem perfeitas, e estarem mesmo longe disso, não deixam de seduzir as suas histórias praieiras, especialmente Jana e Joel, cujos cândidos amores se casam bem à frescura da paisagem, à simplicidade da vida evocada.

Submetida ao curso da História, a obra de Xavier Marques encontra-se hoje relegada a injusto silêncio. A razão, talvez, esteja na solubilidade dos gostos atuais, que se estabelecem, muita vez, ao sabor de modismos críticos. Por outro lado, nas universidades, onde deveriam realizar-se os estudos sistemáticos de História Literária, predomina a excessiva especialização, que não permite ao aluno dos cursos de Letras uma visão diacrônica do processo literário.
 
Se é verdade que Xavier Marques, como bem acentuou Menotti del Picchia na sua oração de posse nesta Casa, teve o destino de viver em “uma quadra na qual ainda se morria em prol do estilo” e, “para que não morresse a forma, matava-se a ideia”; e “gramáticos soltos nas ruas das Letras, semeando pânico, destruindo, a golpes de palmatória, vocações incipientes”, é inquestionável – creio e me permitam a ousadia de afirmá-lo – que a prosa de Xavier Marques, na recriação dos encontros do mar da Bahia, na sua fidelidade aos costumes e às raízes da terra, filia-se, em espírito, à mesma linha que conduz a Jorge Amado.
   
   
MENOTTI DEL PICCHIA
    
Em 20.12.1943, tomava posse Menotti del Picchia, Paulo por obra e graça do “piedoso” padre que o batizou.
 
Mas quem era esse Menotti del Picchia, de nome italiano e estilo e tema e tom brasileiros, mais do que os de sua época, rompendo tradições e tabus e marcando novos rumos nacionais na Literatura e na Língua?

Era o filho do italiano Luiz del Picchia, oriundo da Toscana, banido por suas ideias socialistas, diz Ebe Reale no minucioso apanhado da vida do poeta.

Como italiano, pintor, jornalista, poeta, arquiteto e construtor, sentira, por certo, como antes o Divino Poeta:
   
     Tu proverai si como sa di sale
     lo pane altrui, e como è duro calle
     do scendere e’l salir per l’altrui scale. 

    
(Par., XVII, 55/57)
    
Menotti, em carta de 8.11.1966, em resposta à remessa que lhe fizera de minha palestra sobre “Minhas Reminiscências de Dante”, antes de comentá-la, diz: “Apesar de ter sido aleitado – papai era poeta... – com Dante, Petrarca, Tasso e Ariosto, e o divino Poema ter acordado em mim o vate hereditário [...].”

É a confissão da influência que teria em sua formação a clássica literatura universalista do Renascimento, que se responsabiliza, por certo, pela ampla visão que, desde logo, surge na sua produção literária, com a preocupação permanente do universal, sempre nele, o poeta, o prosador, o político, o revolucionário das Letras e das artes.

Miguel Reale, no admirável discurso com que o saudou nos noventa anos, pergunta-se e responde: 
    
Que foi e que ele é? Poeta, romancista, escultor, pintor, artífice, relojoeiro, advogado, agricultor, cronista, deputado, ensaísta, jornalista ou compositor? O revolucionário dos versos inovadores de Chuva de Pedra e artífice primeiro da Semana de Arte Moderna, ou o cinzelador dos alexandrinos parnasianos de As Máscaras? O artista barroco, que não raro exsurge de seus versos ou de seus romances, ou o Menotti tabelião afeito a redigir, segundo o esclerosado linguajar forense, testamentos e escrituras? O político trabalhista, sonhando salvar o Brasil pelas vias do populismo, ou o Menotti que, ao lado de Cassiano Ricardo, funda a Bandeira, para contrapor-se ao Integralismo de Plínio Salgado, muito embora reconhecendo na época a necessidade de “governos fortes”; ou o poeta que se alia ao mesmo Plínio e ainda ao seu inseparável amigo Cassiano, para no “verde-amarelismo”, e na Escola de Anta, contrapor-se à Antropofagia de Oswald de Andrade, o seu primeiro companheiro na arremetida adolescente de 1922? Ou será que temos aqui, à nossa frente, nesta noite tão viva de recordações e de calor humano, o fundador do Mútuo Socorro de São Paulo, ou o funcionário atento e dedicado ao serviço público? 

É este o homem total, complexo, que honrou a Cadeira 28, que ora me destinais. Nascido em São Paulo, em 20.3.1892, muda-se, aos seis anos, com a família (a mãe Corina del Corso del Picchia e os irmãos), para Itapira, onde o pai “encalhara ao remodelar a igreja local”. No Grupo Escolar Júlio de Mesquita, inicia-se nas Letras. 

Começando o secundário no Ginásio Culto à Ciência, em Campinas, vai depois para Pouso Alegre, em Minas Gerais, onde o pai, de novo, “encalhara” – é o verbo de A Longa Viagem –, contratando serviços no prédio do Ginásio Diocesano São José.

Aí, diz Ebe Reale, “recebe grande influência do bispo D. Corrêa Nery, a quem era ligado por profunda amizade”. “D. Nery e Pouso Alegre estavam no meu destino”, diz ele.

Surgem os primeiros versos, incluídos nos Poemas do Vício e da Virtude, publicados em 1913, “balbucio inaugural de minha descolorida aventura literária”, diz chegando a esta Casa (Discurso de Posse, Revista da ABL, v. 66, p. 150). “Nasce um Poeta”, diz nas memórias.

Tive o privilégio de compulsar, no original publicado em O Mandu, de 2.8.1908, de que foi, então, redator-chefe, algumas de suas produções iniciais, ainda marcadas da influência romântica ou clássica.

Veja-se, por exemplo, o soneto que dedica a João Beraldo, no número 2 do jornal:
   
NOTA ÍNTIMA

Fulgurante de luz, disse uma fada:
Dize tu, ó bardo, dize os teus segredos,
Não falam ciciando os arvoredos,
Não fala a balbuciar a brisa alada?

Não murmura o regato uma balada
Segredando a tremer mil contos tredos?
No convento, uma monja macerada
A luz dúbia da tarde amores ledos,

Não confessa a chorar, na soledade?
Pois ouve, ó diva, o que chorei na lira
Não profano a candura, a virgindade

Ouve o gemer de uma alma que delira
Se suspira minh’alma com saudade,
De saudade é que a pobre inda suspira...

E no mesmo número, escrevendo sobre “A Nossa Bandeira”, com a assinatura “X.X.P.”, defendendo-a de abusos cometidos, começa o artigo:
    
O poeta, no seu estro, encontra a seiva, a luz, o colorido de seu verso; o pintor, nas cores, encontra a vitalidade da paisagem, a estética do colorido, a perfeição da forma; a estatuária campeia o objeto, na fantasia entusiasta, e a morbidez plástica da forma, na perfeição humana; foi assim que Dante legou-nos a Divina Comédia, divina na realidade, pois prima o limado verso na forma, na vivacidade da expressão, na polidez do estilo, e assim Buonarrotti nos deu seus quadros sublimes, seu Moysés extraordinário.
 
Não esquece, todavia, os deveres do estudo e na distribuição dos prêmios do Ginásio Diocesano São José, em 9.5.1907, está ele entre os premiados, apenas (?) em Português, Latim, Grego, Francês, Inglês, Alemão, Geometria e Trigonometria, História Universal, Desenho e Álgebra! E surge o “escultor bissexto” com o busto de D. Arcoverde, diz ele mesmo.
 
Aprestava-se para caminhada que empreenderia, nas Letras e nas artes. 

Concluído o curso secundário, matricula-se na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e aprimora-se nos estudos clássicos.

Mas retorna sempre a Itapira, onde, em 1912, se casa com Francisca Avelina da Cunha Sales, “namorada de infância”, a “Pitutica”, e inicia a vida profissional.

Surgem, então, ao lado do advogado e do jornalista de A Cidade de Itapira, e depois O Grito, as atividades agrícolas, que lhe propiciarão o contato mais íntimo com a vida rural e que desembocam no Juca Mulato (1917). 
    
“Moysés”
    
Precede-o, porém, o poema “Moysés”, lançado em 1917, com a inspiração do tema bíblico, e que agrada a Oswald de Andrade “pelos seus sinais de renovação se bem que vagos e imprecisos” (Mário da Silva Brito, História do Modernismo Brasileiro, I, p. 81).
 
O próprio poeta explica-se no “Antes do Poema” que precede a “edição definitiva” de 1927:      

Quando, em 1913, compendiando minhas rimas de adolescência nos Poemas do Vício e da Virtude, tentava fazer a poesia paulista evadir-se ao cárcere das irredutíveis fórmulas em uso, meu pavor totêmico pelos magnatas literários da época coarctou o insopitado anseio de libertação que se entrevê naqueles versos. A obra saiu tateante e incerta, alternada de concessões e de levantes modernistas. Implacável foi a crítica do tempo para o incipiente balbucio do meu estro rebelde. A quebrar a unanimidade dos baldões que me levariam ao descoroçoamento, levantou-se a isolada voz de Duque-Estrada, no Rio, recompondo, da minha inicial derrota, as energias dos futuros cometimentos.

Foi então (1913), que, entediado dos arcaísmos verbosos dos janízaros do Parnasianismo, mais díscolo e mais ousado, compus quatro cantos do poema bíblico. Um ano após concluí o trabalho, escrevendo o “Horeb”.

Em 1917, aparecia a primeira edição do presente livro. Não menos ruidosos e flamejantes foram ainda os ciclones do descontentamento com que os nédios Jupiters do passadismo saudaram a publicação do meu segundo livro. Trovejaram campanhas nos jornais, onde eu aparecia como um reacionário iconoclasta, incapaz de agitar minha poética dentro das grades alexandrinas das quadras ou das pequenas gaiolas dos sonetos. Moysés, como os Poemas, foi fulminado com excomunhão maior. E eu sofri, porque era muito moço e tinha ainda vaidades.
    
Tenta, portanto, quatro anos antes do banquete que lhe foi oferecido pela publicação de As Máscaras e cinco anos antes do estrépito da Semana de Arte Moderna, o rompimento com as regras rígidas do verso, “com a anacrônica teocracia literária de que eram calafriantes czares os Srs. Heredia e Banville” (Prefácio de Moysés).
 
Assim, Menotti, o clássico, inicia o rompimento com o clássico. O verso não é mais a preocupação exclusivista com a rima, a métrica, a tônica, o ritmo, e, sobretudo, o tema apegado ao rigor parnasiano.

Mas não se há de recusar a marca ainda presente do modelo clássico no verso bem torneado, que vence o autor, no tom grandíloquo que o eleva.

Menotti podia romper com o clássico porque o dominava desde a adolescência. E podia dar-se ao luxo de dispor-se à revolução que buscaria derrubar todos os ídolos, destruir todas as regras, na radicalização total: 
    
E foi justamente porque vivemos tanto tempo sob a ameaça da férula dos Corujas que um belo dia, na revolução modernista, entregamo-nos a uma bárbara orgia de solecismos, reduzindo a cacos todas as normas clássicas, barbarizamos o idioma, proletarizando-o na expressão viva, nacional e pitoresca dos seus modismos plebeus, e acabamos por tirar das suas excelentes colocações todos os pronomes, tal qual fazia outrora o político quando subia ao poder expulsando dos seus cargos todos os adversários...

                                                                                                          (Discurso de Posse na ABL – Revista, 66/163).
    
Menotti, homem do seu tempo, com sensibilidade para as mais importantes questões dos momentos que viveu, tornou-se, desde a primeira hora, ao lado de Oswald de Andrade e Mário de Andrade, um dos mais atuantes jovens intelectuais de São Paulo que, ainda em 1917 e nos anos seguintes, prepararam de forma consciente a Semana de Arte Moderna de 1922 e desencadearam o Movimento Modernista. Sua atuação de liderança e de participação se evidenciou de forma clara ao pronunciar, na noite conturbada de 15 de janeiro de 1922, a conferência em que, pela primeira vez, um integrante daquele grupo formalizou de público seu ideário artístico.

Não foi apenas um dos apóstolos da primeira hora do Movimento Modernista, mas também um dos seus mais importantes evangelistas e, sob o pseudônimo Hélios, transformou sua coluna no respeitado Correio Paulistano, porta-voz do conservador Partido Republicano Paulista, em tribuna permanente das ideias dos jovens, da mesma forma que Oswald de Andrade o fazia pelo Jornal do Commercio.
 
Analisar-lhe a obra de poeta significa compreender e acompanhar-lhe a atuação naqueles momentos heroicos de conscientização da elite intelectual paulista, no seu afã diário de articulista. 
    
 Juca Mulato 
    
É, porém, com Juca Mulato, no mesmo ano de 1917, que Menotti ganha a consagração, pode dizer-se unânime, da crítica e do público, ainda hoje revitalizado o poema na voz popular.

Se ainda não representava a revogação total dos cânones hieraticamente formalistas dos parnasianos, mostrava tematização nova, pelo revigoramento do discurso nacionalista. Esse fator foi preponderante para o êxito, pois vinha ao encontro dos sentimentos generalizados da sociedade brasileira, no contexto gerado pela Primeira Guerra Mundial. Por outro lado, o poema denunciava algo da visão romântico-sentimental do caboclo brasileiro, distanciando-se do seu homônimo, o citadino recalcado e naturalista, O Mulato, de Aluísio Azevedo, bem como do opilado Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, dele bem mais próximo apenas no tempo.

Ao se propor no Juca Mulato exprimir o “gênio da nossa raça e da nossa gente”, Menotti del Picchia teve a sensibilidade artística para ser dos primeiros a perceber, como mostra Mário da Silva Brito, o desfecho do estádio agrário da sociedade brasileira e sua passagem para a problemática urbana moderna. Esse aspecto estará presente em todo o movimento modernista, refletindo a mais progressista parcela da sociedade brasileira dos anos de 1920, e culminará com a Revolução de 1930.
 
Por esse pioneirismo, entende-se a larga repercussão do Juca Mulato, que assinalará para sempre a vida de Menotti del Picchia. Alfredo Pujol rotulou-o de “obra-prima”. Mário de Alencar ressaltou em seus versos o “sentimento humano na sua intensidade e designação cabocla”, que neles encontra expressão vivaz e cabal que só pode dar uma imaginação como a sua [de Menotti], de vigoroso colorido brasileiro, mas afinado por um módulo de música antiga e eterna; Goulart de Andrade apontou que o poema “é prodigioso de ritmos e, pelos heptassílabos das suas canções, eminentemente brasileiro”. Além da manifestação dos corifeus da Crítica Nacional, não lhe faltou também a consagração de além-mar para completar o quadro: de Portugal, o autor de A Ceia dos Cardeais, Júlio Dantas, então no fastígio da glória literária, confessa-se comovido pela sua leitura e vê no poeta brasileiro
   
um artista de raça, eloquente, sóbrio, às vezes lapidar nos conceitos, pintando, com uma largueza e uma justeza de valores surpreendente, e possuindo tão excepcionais dotes da comunicativa emoção, que eu próprio, endurecido no ofício de escrever, senti, ao ler os seus versos, que os olhos se me enevoavam e umedeciam de lágrimas
    
Juca Mulato tinha tudo para ser o poema nacional e o herói: 
    
O “clima” é o nativo,

Vem, na tarde que expira e na voz de um curiango...

No piquete relincha um poldro; um galo alacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre
clarina a recolher; entre varas de cerdos,
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos...

O “tipo” é o “rosto moreno / É ágil como um poldro e forte como um touro”.
    
A “vida”
    
Era-lhe um nada... 
Uns alqueires de chão; o cabo de uma enxada; 
um cavalo pigarço; uma pinga da boa; 
o cafezal verdoengo; o sol quente e inclemente... 

    
O livro falava ao Brasil de todas as latitudes. E confundiu-se com o poeta, dominou-o na voz popular.

A ponto de dizer Miguel Reale: 
    
Já é tempo, porém, de livrarmos Menotti de seu personagem, pelo menos para que se tenha ciência de outras expressões, não menos poderosas, de sua poesia. O primeiro, aliás, a encetar essa reação foi Cassiano Ricardo, em página tão lúcida que me não furto ao desejo de recordá-la, mesmo porque ela fixa a riqueza lírica e a variegada capacidade plástica de nosso homenageado. “Neste ponto é que eu”, escreve Cassiano, “como seu amigo, seria mesmo de brigar com o Juca; não é só você que tem direito à glória do poeta, isso não”.
    

Verdade, contudo, é que, como afirma Antonio Olinto (A Invenção da Verdade (Crítica de Poesia), p. 79). 
    
 Como parte de um corpo instável, o poeta reagiu contra Juca Mulato, mas o poema se impôs ao autor e não se deixou destruir. Existe um “juca-mulatismo” subjacente no espírito do brasileiro dos Estados de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, de formação real antiga e mais ou menos estratificada. Na luta do poeta contra sua obra, Juca Mulato venceu por estar, como poema, ligado a esse ambiente social cheio de romantismo.
    
 As Máscaras – A “Semana de 22” 
    
A Menotti cheguei, como disse, pelas “As Máscaras”, atraído por aqueles sonoros versos que me soavam aos ouvidos e pelo convite inicial: “Em qualquer terra em que os homens amem. / Em qualquer tempo onde os homens sonhem. / Na vida.”

Arlequim, Pierrot e Colombina, desejo, sonho, mulher, figuram como personagens do cotidiano, que o carnaval do meu tempo estilizava e vulgarizava. “A anca em forma de lira e a cintura de vespa / A voz de uma flor, se acaso a flor falasse / uma onda de volúpia, um cheiro de pecado”.
 
Quem não os terá sentido e sofrido, desejado e sonhado na adolescência controlada do meu tempo, ousando menos do que o Arlequim, que lhe disse:

Arlequim

O ardor do meu desejo,
a glória de arrancar dos seus lábios um beijo,
a volúpia infernal dos seus olhos devassos,
o prazer de estreitar, nervoso, nos meus braços,
de sentir a lascívia heril dos seus meneios,
esmagar no meu peito a carne dos seus seios.

Vejo agora que um dos meus sonetos de adolescente, sem querer e sem pensar, nasce desses versos. E só não o repito (agora) para que o contraste não me desvaneça a glória desta solenidade, penalizando-vos com a pobreza das rimas do versejador diverso...
 
No lançamento do livro, como se sabe, em janeiro de 1921, entre os oradores da homenagem a Menotti, que se deu no célebre Trianon e à qual se associaram os mais representativos nomes do establishment político, social e artístico da cidade, estava Oswald de Andrade, um nome dos jovens dissidentes, “um grupo de orgulhosos cultores da extremada arte de nosso tempo”. Ao louvar a obra de Menotti, Oswald o diz integrante daquele grupo, “como o seu mais vistoso padrão”, e, em verdade, lança-lhe um repto para assumir as responsabilidades no processo de mudanças em que se empenhavam.
 
Aceitando o desafio, em resposta às várias saudações, na parte relativa à renovação literária e artística, por que clamara Oswald, Menotti se expressou, com a elegância e delicadeza que as circunstâncias pediam, em termos que indicam, sem a menor sombra de dúvida, total concordância de ideias, pois a vida da moderna São Paulo estava a pedir “uma arte mais universalizada e complexa e uma curiosidade mais expectante (que) acicata a proclamada lerdice da nossa incultura”, ao tempo em que exige dos artistas, que deixaram “de ser o adorno de estufa, ainda quente do ontem romântico”, se transformem, os “fixadores dos nossos gestos, os Walt Whitmans de uma vida máscula e violenta, os d’ Annunzios das atitudes epopeicas, os Verhaerens das cidades, polvos tentaculares”.
 
Completando esse esboço de ideário, quinze dias após a homenagem, em crônica do Correio Paulistano, de 24 de janeiro de 1921, a que dá o significativo título de “Na Maré das Reformas”, Menotti se apressa a fixar um programa teórico, que o historiador do Modernismo, Mário da Silva Brito, assim resumiu:
   
a) o rompimento com o passado, ou seja, a repulsa às concepções românticas, parnasianas e realistas; b) a independência mental brasileira através do abandono das sugestões europeias, mormente as lusitanas e gaulesas; c) uma nova técnica para a representação da vida de que os processos antigos ou conhecidos não apreendem mais os problemas contemporâneos; d) outra expressão verbal para a criação literária, que não é mais a mera transcrição naturalista, mas recriação artística, transposição para o plano da arte de uma realidade vital; e) e, por fim, a reação ao status quo, quer dizer, o combate em favor dos postulados que apresentava, objetivo da desejada reforma. 
    

Esse programa passou a ser o roteiro dos artigos que o grupo, principalmente Oswald, Mário de Andrade, Cândido Motta Filho, além do próprio Menotti, veiculou quase diariamente: combate ao passadismo (Menotti escreve artigo intitulado “Morte a Peri!”), ao Romantismo piegas, sentimental e mesmo ao Condoreiro; ao Realismo e sua “pedanteria científica”, patológica e descritivista; ao Parnasianismo, pela sua retórica vazia e formalista, ao tempo em que se elogia o Simbolismo (Mário de Andrade escreveu uma série de sete artigos, “Os mestres do passado”, em que considera mortos e superados os poetas parnasianos brasileiros mais representativos – Francisca Júlia, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac e Vicente de Carvalho); ao regionalismo caboclo à Jeca Tatu.
 
Como se pode ver, os modernistas identificaram, em amplo espectro, o que de mais estabelecido havia na Literatura Brasileira e que entendiam devia ser destruído.
 
Nessa ação, mostram-se coesos e fortes, o bastante para, além das páginas dos jornais, enfrentarem a reação publicamente. Operada a derrubada dos mitos e identificados os elementos responsáveis pela estagnação artística nacional, os modernistas se preparam para apresentar sua proposta de reformas.
 
 Assim, planejam, organizam e fazem realizar, no ano do Centenário da Independência, de 11 a 18 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, a Semana de Arte Moderna. E lá estará Menotti del Picchia pontificando entre os companheiros de geração, fazendo a palestra do dia 15 de fevereiro, “Arte Moderna”, na qual serão apresentados já os primeiros frutos práticos da nova proposta.

Sob grande algazarra da plateia, organizada e orquestrada, principalmente enquanto se exemplificavam a Prosa e a Poesia Modernista – Mário de Andrade leu poemas que seriam publicados em Pauliceia Desvairada; Ronald de Carvalho leu o poema “Os Sapos”, de Manuel Bandeira; Oswald de Andrade, trechos de seu inédito Os Condenados; Sérgio Milliet quase foi impedido pelos relinchos e miados; Menotti del Picchia assim apresentou os princípios da nova estética: 
    
Queremos libertar a Poesia do presídio canoro das fórmulas acadêmicas, dar elasticidade e amplitude aos processos técnicos, para que a ideia se transubstancie, sintética e livre, na carne fresca do Verbo, sem deitá-la, antes, no leito de Procusto dos tratados de versificação. Queremos exprimir nossa mais livre espontaneidade dentro da mais espontânea liberdade. Ser como somos, sinceros, sem artificialismos, sem contorcionismos, sem escolas. [...]

Dar à Prosa e ao Verso o que lhes falta entre nós: ossos, músculos, nervos. Podar, com a coragem de um Jeca que desbasta à foice uma capoeira, a “selva áspera e forte” da adjetivação frondosa, farfalhada, incompatível com cem séculos de economia, onde o minuto é ouro. [...]

Nada de postiço, meloso, artificial, arrevesado, precioso: queremos escrever com sangue – que é humanidade; com eletricidade – que é movimento, expressão dinâmica do século; violência – que é energia bandeirante.
 
Assim nascerá uma arte genuinamente brasileira, filha do céu e da terra, do Homem e do mistério. [...]

A cidade tentacular radica seus gânglios numa área territorial que abriga 600 mil almas. Há na angústia e na glória da sua luta odisseias mais formidáveis que os que cantaram o aedo cego: a do operário reivindicando seus direitos; a do burguês defendendo sua arca; a dos funcionários deslizando nos trilhos dos regulamentos; a do industrial combatendo o combate da concorrência; a do aristocrata exibindo o seu fausto; a do político assegurando a sua escalada; a da mulher quebrando as algemas da sua escravidão secular nos gineceus eventrados pelas ideias libertárias post bellum [...] tudo isso – e o automóvel, os fios elétricos, as usinas, os aeroplanos, a arte – tudo isso forma os nossos elementos da estética moderna, fragmentos da pedra com que construiremos, dia a dia, a Babel do nosso sonho, no nosso desespero de exilados de um céu que fulge lá em cima, para o qual galgamos na ânsia devoradora de tocar com as mãos as estrelas. 
    
Em sua palestra, Menotti del Picchia, ao tempo em que defendia a modernização dos procedimentos técnicos da Arte no Brasil, ditava que ela deveria ser brasileira na sua temática. Mostrava-se, assim, coerente com os princípios do Juca Mulato, reiterados no discurso do Trianon e em sua coluna do Correio Paulistano, especialmente na já citada “Na Maré das Reformas”, e assim continuou nas que se sucederam à Semana. Em duas de suas crônicas, a 13 de abril e a 6 de maio de 1923, Menotti insiste em que o Brasil precisa, incontestavelmente, ativar o vulto de todas as suas fúlgidas tradições, tutelar o patriotismo sacrossanto de sua Língua e preconizar uma política de incansável defesa do seu espírito nacional, o qual deve ser o ideal constante de todos os bons brasileiros, ao mesmo tempo que recomenda aos pesquisadores que “procurem, o mais possível, restringir e delimitar os elementos caracteristicamente nacionais que singularizam os fenômenos sujeitos aos seus estudos e observações”.
 
Menotti del Picchia jamais deixou de pugnar pela radicação da Arte à terra brasileira, assumindo um sentimento missionário de nacionalismo, que culminou com os movimentos “Verde-Amarelo”, “Anta”, “Bandeira”, e que o acompanhou por toda a vida e em toda a sua obra. E foi esse sentimento que o fez discordar de Oswald de Andrade, inicialmente quando este lançara o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, em 1925, dando começo às dissensões do grupo modernista, posteriormente radicalizadas com a “Antropofagia”, em 1928.
 
Nesse clima de desagregação, em virtude das tendências individuais que naturalmente se definiram após a “festa” da Semana, Menotti lançou, em 1925, seu primeiro e mais fiel livro aos princípios poéticos do Modernismo, Chuva de Pedra
    
Chuva de Pedra 
    
Chama-lhe Menotti “meu primeiro livro de versos”. E explica: 
    
Não conto como tais meus poemas com sua estrutura traçada sobre plano premeditado, não representam, como estas poesias, os vários flagrantes comocionais do meu espírito em transe lírico, nem a inquieta fixação de um estado de alma diante da paisagem. 
    
Considera-o “alvorada lírica da minha sensibilidade”, “o alvoroço tímido de uma estreia” (“Prefácio”, São Paulo, 1925).
 
São estes, na verdade, os “versos inovados” e revolucionários do poeta, na fuga definitiva aos cânones aprisionantes, desde a “Chuva de pedra” que abre o volume:
   
O granizo salpica o chão como se
as mãos das nuvens
quebrassem com estrondo um
pedaço de gelo
para a salada de frutas dos
pomares...

O cafezal, numa carreira alucinada,
grimpa as lombas de ocre
apedrejada matilha de cães verdes...
Fremem, gotejam eriçadas suas copas
como pêlos de um animal todo molhado.
O céu é uma pedreira cor de zinco
onde estoura dinamite dos coriscos.
Rola de fraga em fraga a lasca retumbante
de um trovão.

Os riachos
correm com seus pés invisíveis e líquidos
para o abrigo das furnas. No terreiro,
as roupas penduradas nos varais
dançam, funambulescas, com as pedradas,
numa fila macabra de enforcados!     

Mudaram os temas, os ritmos, o verso desprende-se das rimas e canta em harmonia nova.
   
Todo o brejal sonoro
é o alarido orquestral de uma ópera futurista!
Risca o céu o rojão de uma estrela cadente
que se desfaz em lágrimas de meteoros... 
    
Naquela “Noite de São João”, “Toda a cidade é um relevante canhoneiro / contra o céu da geada”.

Ou no “Jardim Tropical”:
   
Monjas lunares os lírios rezam de
mãos postas pelos cravos degolados
cujas cabeças estão içadas nos
chuços das hastes escorrendo
o sangue das pétalas.
Corusca a lâmina jalde do grande
sol carrasco
entre a guarda régia
dos girassóis guerreiros escamados de ouro.
Tremem ao vento os paveses das glicínias.
As papoulas roxas com seus pluviais de seda
são graves arcebispos inquisidores.
A plebe miúda e bulhenta das madressilvas
apinha-se em todos os galhos
para espiar o sacrifício cruento.
E contra o monstruoso atentado
apenas se ergue na sombra,
timidamente o protesto aromal das violetas... 
    
Ou, ainda, os versos de “Baía da Guanabara”:
   
O Pão de Açúcar é um pescador filósofo
de costas voltadas para o mar. (...)

A Urca o ermitão taciturno
resiste patreamente à tentação das nuvens
que dançam em seu redor como mulheres nuas.

Ou na descrição da “Praça da República”:
   
Os chorões lavaram seus cabelos verdes
nas piscinas de cimento
dentadas de rochedos feitos por marmoristas
e desenhados por Debrugas...

Álvares de Azevedo, o último Romântico,
condenado às galés da imortalidade
cospe na praça noturna
do alto de sua herma o seu desdém de bronze. 
    
Até o “Nirvana” final:
   
Quisera ficar a teu lado
No grande êxtase pacífico
do nosso silêncio.
Continuar indefinidamente
o diálogo mudo dos nossos
olhos.

Quisera
diluir-me em ti como um aroma no vento
como dois rios que fundem suas águas
no abraço do mesmo leito
e correm para o mesmo destino...

Somos duas árvores solitárias
que entrelaçam suas ramas:
à mesma brisa estremecem
florescem
envelhecem
e morrem... 
    
Os poemas de Chuva de Pedra constituem-se, sem sombra de dúvida, na expressão poética mais forte de Menotti del Picchia, pelo uso de imagens arrojadas, pela riqueza da métrica e dos ritmos, desde as redondilhas até a prosa sinfônica, pelas variadas aliterações e deslocamentos qualitativos. É obra de elaboração técnica madura e de domínio consciente dos procedimentos poéticos.

O livro que se segue, República dos Estados Unidos do Brasil, de 1928, é, por sua vez, a realização dos princípios do grupo “Verde-Amarelo”, que Menotti criou, juntamente com Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Cândido Motta Filho, sob a influência de Alarico Silveira e que ele considera “meu grande poema cíclico” (A Longa Viagem, p. 237).

As preocupações sociais e políticas que passam a dominar Menotti e seu grupo terminam por reduzir a força essencialmente poética da sua expressão, submetendo a essas preocupações aquele princípio que Mário de Andrade apontou como uma das conquistas fundamentais do Movimento Modernista: o direito permanente à pesquisa estética.

A poesia de Menotti assume, assim, um tom ufanista: “não há o que te iguale, ó minha terra natal!”, exclamou ele em um dos seus poemas desse livro, no qual se propõe escrever e cantar em versos a formação do País e no qual traça o perfil de vultos preeminentes da História Brasileira. 
    
 O ficcionista 
    
Como romancista, Menotti del Picchia produziu vasta bibliografia: Flama e Argila (1920) (e que após a quarta edição intitulou-se A Tragédia de Zilda), Laís (1921), O Homem e a Morte (1922), Dente de Ouro (1923), A República 3.000 (1930) (posteriormente intitulado A Filha do Inca, (1949), A Tormenta (1931), Kalum (1936), Cummunká (1938) e Salomé (1940).
 
Citem-se, ainda, as novelas e os contos: O Crime daquela NoiteA Mulher que PecouToda Nua e A outra Perna do Saci.
 
Se na sua poesia, no calor das lutas do grupo modernista antes e imediatamente depois da Semana de 1922, Menotti deixou-se impregnar pela estética nova, adotando os procedimentos técnicos formais inspirados na Poesia Futurista – cujo rótulo aceitou com relutância não negada nunca; se na sua poesia o sopro renovador de 1922 se faz presente, o mesmo não ocorreu na sua prosa de ficção. Enquanto Oswald de Andrade buscou as inovações na prosa de Serafim Ponte Grande e das Memórias Sentimentais de João Miramar; enquanto Mário de Andrade produziu a rapsódia do Macunaíma, Menotti assumiu, em sua ficção romanesca, atitude mais conservadora, aceitando as lições que a tradição estabelecera. Seus romances apresentam regular linearidade de enredo e no trato do tempo; os recursos técnicos de caracterização das personagens de que se utiliza são próximos daqueles empregados pelos autores realistas e, na fixação dos espaços físicos, procura muito mais a criação de cenários mais ou menos estáticos do que a ambientação psicológica. Por outro lado, de tal forma se mostra Menotti comprometido com seu projeto nacionalista, que, muitas vezes, como aponta Mário Donato, crítico e prefaciador, assume um tom teorizador e ensaístico, como um romancista naturalista.
 
Esse tom teorizador quebra, por vezes, nas personagens o que delas mais se exige de vida própria e de problemática psicológica individualizadora, enfraquecendo os dramas humanos que retrata e inviabilizando o estabelecimento de relação moral dos leitores com as personagens e as situações que elas vivem.
 
Isso se nota, por exemplo, em A Tormenta, no qual a República Tropical e Sidéria podem ser interpretadas como alegorias do Brasil e de São Paulo no ano de 1932. Embora Menotti declare que escreveu “páginas de desespero e de sangue”, longas disquisições das personagens objetivam, muito mais, discutir as teses extensamente propostas e a problemática de uma época de mudanças.
 
Roman à clef, vale-se o autor da oportunidade para caracterizar as figuras mais preeminentes do tempo nos episódios que descreve. A tal ponto que, à época, corria de mão em mão a “chave” do romance, com as personagens fictícias e os vultos reais que encarnavam.
 
Previne-se Menotti, logo na página de abertura, nos tópicos que precedem o romance: “A República Tropical não é o Brasil. Pode ser o Brasil ou qualquer outra democracia organizada em curtos séculos sobre o trópico...”

E segue, para afirmar: “As personagens que criam o drama são irreais...”

E mais ainda: “Ninguém se meta, por vaidade ou por suscetibilidade, na pele das criaturas que aqui urdem esta estranha tragédia. Seria cair no pecado de orgulho alguém julgar-se homem-tipo.”

Na verdade, tanto bastou para que se desencadeasse a curiosidade das identificações. Que nada têm de extraordinário: não se há de impedir que a Arte copie a vida, se a vida, tantas vezes, copia a Arte. E as personagens, a princípio dominadas pelo autor, libertam-se, autoimpulsionam-se e traçam e cumprem seu próprio roteiro, vivendo vida autônoma.

Mesmo nos típicos romances em que os autores buscam retratar figuras determinadas, reais, acabam as personagens que as corporificam adquirindo autonomia, que a lógica, ou a falta de lógica da vida, conduz, sem que se transformem em marionetes manobráveis ao alvedrio do dono da narrativa, que tem de render-se para não quebrar o fio vital que as anima. E sem atender ao que lhes aconteceu na vida real. Quando se trata de romance de costumes políticos, ligado às atividades políticas, às lutas que envolve, isso parece acentuar-se: as opções do autor ao descrevê-las, ao traçar a linha de ação das personagens, não têm senão o meio próprio em que atuam, os condicionamentos que sofrem e, consequentemente, certas reações que são normais e às quais dificilmente podem subtrair-se.
 
Com isso, vitalizada a personagem, movendo-se no enredo, assumindo posições, há consequências que se cumprem inelutavelmente e que impulsionam o criador.
 
Os romancistas de largo fôlego, sobretudo, lidando com centenas e centenas de personagens, obviamente hão de encontrar no dia a dia da vida inspiração nova que as modele e mova a novas criações; e para terem vida não hão de apartar-se da vida real, ainda aquela que a ficção vitaliza.

Não é preciso invocar nenhum dos grandes ficcionistas. Entre eles, multiplicam-se os exemplos, que todos conhecem, especialmente nesta Casa, onde se encontram alguns que vivificaram as melhores criaturas que a Ficção pôs no mundo, com os dados da realidade e o sopro do autor. Personagens que a vida descobre ou o ficcionista, com base nela, inventa, completa, modifica, retoca, reconstrói, combina, mas das quais costuma brotar uma autonomia à qual, afinal, tem de obedecer.
 
A Tormenta não fugiria a esse destino. E hoje, passados os anos, perdida a “chave” das personagens, o romance é só o que deve ser: um retrato da vida política de República Tropical, que enfrenta a ameaça do Caos.
 
Flama e Argila (depois intitulado A Tragédia de Zilda), que surge em 1920 – “pioneiro na Prosa Modernista”, diz Tristão de Athayde –, antes mesmo que o movimento se declarasse na estrepitosa noite de 1922, não foge a essa apreciação geral.

A carta de Breno, que o abre, enche-se de conceitos.
 
No fundo, a linguagem do romance não é a moderna, antes a clássica, no próprio torneio da frase, na adjetivação ampla e castiça, que fulge logo nos primeiros quadros descritivos. Até na lembrança do amor de Paulo e Francesca, que surge como inspiração do Divino Poeta; eno tom francamente romântico em que se desenvolve o tema; ou no próprio desenho das personagens e na linguagem que usam.
 
Cummunká, de 1938, é, diz ele, “em última análise, o esforço do inverossímil à cata da verdade”.
 
Nele encontro o Menotti que conheci, no tom e na verve do causeur que era e que se espelha nos diálogos e no debuxo dos quadros do romance, misturados sempre às alusões clássicas a Bach, Parsifal, à Divina Comédia, às manobras de Napoleão e tantas outras que repontam na obra. 

De par com isso, a crítica social, como à mediocracia, “estágio de semicultura em que se encontram as massas que através do jornal, do rádio, do cinema e da maisrápida circulação do homem, se apossam de conhecimentos superficiais e esparsos, sem a coordenação de um sistema”.

Até mesmo nas elucubrações filosóficas e sociológicas dos chefes índios, reunidos para estudar o confronto com a bandeira do “Rebate”, falando sobre a mediocraciae sua cura pela intensificação da Cultura e todas as outras ponderações que surgem nas conversas de Kummunká, Ambará, Cambeaçu, todos.

Culminando no gran finale da rendição dos brancos à nação xavante para lhes impor “a beleza da paz”.
 
Sem que faltem o romântico encontro de Menha e Cendi e as cores que o pintor admirável da Natureza empresta aos quadros nos quais se move a trama.
 
Por trás de tudo, o ar irônico do artista, sorrindo sob os óculos.

No conjunto ficcional, destaca-se Salomé, que Mário de Andrade considerou “o melhor, o mais completo dos livros do grande escritor, sua maior contribuição para anovelística nacional”. Nele atenuam-se as preocupações teorizadoras, assumindo suas personagens – Salomé, Eduardo, Cel. Antunes, D. Sarah – caráter individualizador,não estereotipado. Embora, como em outros romances de Menotti, se discuta a dicotomia cidade x campo, representada na imobilidade deste e na velocidade daquela, essaproblemática, em nenhum momento, assume preeminência tal que abafe os dramas humanos das vidas que se desenrolam.
 
Certamente reside nesse aspecto o elogio que ao romance faz Mário de Andrade, completado com a observação de que só pode ter “louvores para um escritor perseguidopela celebridade e pelas qualidades naturais que, após dezenas de obras, faz um esforço honesto para se renovar e consegue se realizar integralmente, como Menotti del Picchia em Salomé”.

E não difere Tristão de Athayde, que, depois de asseverar “que a Poesia Modernista se apresentava muito mais revolucionária que a Prosa”, considera Salomé “sua obra-prima em romance”.
 
O Menotti dos contos e novelas é mais solto.
 
Veja-se, por exemplo, O Homem que Precisava Ter Ciúmes, no qual interfere na estória, intervém, a todo instante, na narrativa, mistura o sério e o triste, é oMenotti falando, conversando, glosando a vida, na personagem de Tertuliano Trancoso.

Releiam-se os ditos:

 “Mulher é assim: não ama, acostuma.”

 “Não há homens mais castos e menos puros: há mais hipócritas ou mais francos.”

E mesmo nas elucubrações à Freud, com que intervém no conto. 
Ou em O Árbitro: 
    
Reparei que um menino é uma maquette de um homem. Como tal, em proporções menores, é pérfido, hipócrita e cínico. Quando cresce, com seus músculos e cartilagens,também crescem sua perfídia, sua hipocrisia e seu cinismo. Há assassinos em embrião, como há grandes políticos em semente. Desde logo denunciam suas tendências: quasetodos são ladrões e delatores. Em criança furtam goiabada e acusam os colegas de tê-los beliscado na fila. Grandes, roubam heranças e urdem trampolinagens e falam malde todo o mundo. 
    
“Era preto como a dor de uma viúva”. Ou, referindo-se à “petulância intelectual dos teólogos ou dos hereges”: 

“Se o bajulador soubesse da sua força, seria o dono do universo.”
 
Ou nas disquisições criminalísticas de O Homem e a Morte, em que Menotti volta aos tempos de advogado em Itapira, nas tinturas do seu Direito Penal...

Ou, na definição crítica do Trivelli, “crítico raquítico, com um estilo de teia de aranha. Nele enredara todas as burrices que os literatos escreviam. E enredara também as suas”.

Não se esgota, contudo, Menotti na poesia e na ficção do Romance, da Novela e do Conto.

Não lhe foi estranho o Teatro. Nem a Memorialística, com as duas etapas de A Longa Viagem, além das crônicas que reuniu em O Pão de Moloch (1921) e O Nariz de Cleópatra (1922).

No Teatro, bastaria lembrar Jesus. O clima é, obviamente, diverso: emana dele a religiosidade em todas as palavras, reacende-se no verso, canta nas estrofes.

Quando fala, ou fala Madalena, ou Lívia, há um hálito de santidade nas apóstrofes, que o poeta quis acentuar. 
    
Lívia:
   
Ele é bom como o trigo
que nutre, como a luz que a terra toda aclara,
como a lã que do frio o corpo nos aquece.
Seu olhar é um azul rasgado em paraísos.
Sua voz a canção que canta no ar o vento.
Ele prega o perdão, o amor e a caridade.
Agasalha com as mãos, mais brancas que as ovelhas,
as crianças sem pão e os mendigos sem teto. 
    
E Pilatos, visto por Caifás:
   
Ele é um fraco.
Vive a titubear. Quer estar bem com César
e estar bem com os judeus. Teme afrontar o povo.
Nem parece um romano: é a indecisão togada... 
    

O memorialista 
    
A Longa Viagem compreende apenas o período que vai até 1930, sendo a primeira etapa até 1918.

Surge o Menotti da conversa sedutora, aberto, descontraído, nas reminiscências que reconfortam a alma e, estranhamente, fortalecem o ânimo, na lembrança dos desafios vencidos.

E vem Itapira, a antiga Penha do Rio do Peixe; “o Rio do Peixe, embaixo, torcendo-se em curvas entre as margens até furar a ponte do Cubatão para ir rumo ao seu destino...”.

Revi essa paisagem repousante, faz poucos dias, em viagem sentimental à cidade e à Casa de Menotti del Picchia, onde se recolheram as relíquias do poeta. E, ao contemplar o horizonte visto do Parque Juca Mulato, senti que o quadro reclamava a pena do pintor-poeta, descobrindo-lhe os segredos das cores nos versos e nos desenhos.

Ao longe, o divisor de águas São Paulo-Minas, antes unidos que separados no alcantil azulado, cercado dos canaviais de um verde amarelo adocicado, ou dos cafezais verdoengos pintando entre o ocre das terras que se preparam para a nova semeadura.

E vi, na sala modesta da casa, a mesa sobre a qual, anos a fio, a mão do mestre vivificou as figuras que os versos cantam e os romances movimentam perpetuamente.

Ao canto, o fardão acadêmico, descoloridos os fios de ouro, tornados prata velha pela vertigem implacável dos anos; nas estantes simples, os livros raros, asprimeiras edições ou os originais que se manuseiam como livros sagrados que os doutores ensinaram; no outro canto, como vencendo um desafio, a casaca, estranhamentenova e reluzente no cetim que resistiu ileso ao esquecimento e ao desuso.
 
Pairando em tudo, como clima envolvente, a figura do poeta, uma ponta de ironia, mas acomodada e compreensiva, sob os óculos das grossas estrias de vidro, comoquem, vendo e sabendo, recebe, comovido e surpreso, a homenagem do sucessor que viu jovem e impetuoso e agora, vencendo as fadigas dos anos, vem buscar inspiração paralembrar-lhe a vida e a obra.

Esse o Menotti tranquilo da longa viagem, de que nos deixou apenas as duas etapas iniciais. 
    
Literatura infanto-juvenil 
    
Creio que a Menotti terá parecido alcançar as culminâncias da montanha da vida, que ele galgou áspera, resoluta e gloriosamente, quando, conquistados para suasobras os jovens, os adultos e os anciãos, com seu verso e sua prosa, se dispôs a seduzir a candura, a simplicidade e a alegria das crianças e a escrever-lhes ashistórias que lhes povoariam de sonhos e ilusões a imaginação criadora.
 
É estranho como esse fenômeno se repete em grandes escritores. Temos, entre nós, nesta Casa, exemplo recente em Orígenes Lessa.
 
Pois Menotti se lançou a essa tarefa, com a espontaneidade com que procurou ver as coisas e as situações, e se dispôs a contá-las, naquela “lógica infantil” a que,há mais de meio século, se referia Tristão de Athayde, “que tem uma lógica que a lógica desconhece” (“Literatura Infantil”, in Estudos, 1.ª série, 1972, p. 217).
 
Tentou-o nas Viagens de João Peralta e Pé de Moleque e No País das Formigas: Novas Aventuras de João Peralta e Pé de Moleque e João Peralta, livros que se espalham hoje por todo o País, às vezes constituindo leitura oficial nas escolas, servindo aos exercícios didáticos de análise e perpetuando, na memória infantil, a lembrança do poeta. 
    
Escultor e pintor 
    
Escultor, aos 11 anos Menotti modelava o busto do cardeal Arcoverde e o de D. Antônio Maria do Claret, superior dos “padres claretianos”. Inúmeras outras obras, como O Saci, e cabeças de Antonieta Rudge, Helena Rudge Miller, Liberal del Picchia, Índio Quekató etc.
 
Pintor, em 1926 e 1927 pintava “dois quadros essencialmente modernistas”: “Ascensão de uma Alma” e “As Músicas de Wagner”. E essa produção se ampliaria,espraiando-se em telas que ora fixam a Semana de 1922, retratam Juca Mulato ou As Máscaras, lembram paisagens rurais ou urbanas (como o Rio de Janeiro, São Vicente, aconstrução de Brasília), ou enfeitam a Fazenda Bom Jardim, em Guaxupé (MG), ou acervos particulares.

Mas onde o Menotti se libera é nos traços simples, expressivos, vivos da caricatura, que fixam momentos de sua vida, com os personagens fictícios ou reais que aela se ligaram: a começar das ilustrações com que enriqueceu seus livros, ou nas com que glosou flagrantes sugestivos de A Longa Viagem, de que nos deixou apenas asestações iniciais.
 
Há nele a ânsia de tudo conhecer e tudo realizar: o espírito do humano, no sentido mais amplo e mais completo, que nada ignora e a que nada é alheio. E assim se explica a ligação a Antonieta Rudge, como o encontro com Brecheret, Tarsila, Di Cavalcanti, Villa-Lobos e outros, que formam a linha de frente inovadora da Revolução Modernista em todos os campos.

    
O homem público. O estadista 
    
Espanta a quem lhe examine a obra, na sua inteireza, deixando de lado outras virtudes do polígrafo – o poeta, o ficcionista, o memorialista –, a extensão e a profundidade dos estudos que destina a temas políticos e sociais, quer os de ordem geral, universais, quer os que cuidam especificamente da realidade brasileira.

Dedica-lhes boa parte de sua obra (e também isso faremos nesta oração) e busca definir a realidade brasileira – enigma tão falado e tão ridicularizado depois –, com base na “larga experiência política no parlamento e em postos de responsabilidade”, “o contato constante com alguns estadistas, que ocuparam a Presidência da República, três revoluções e a meditação e estudo”, que, diz, “acabaram dando, em nosso espírito, os contornos dessa famosa ‘realidade’” (“Prefácio”) a Soluções Nacionais, em 1935).

Ressalte-se que, depois disso, como veremos, não se encerraria o ciclo dessas meditações, como acrescer-se-ia sua experiência com a eleição para a Câmara dos Deputados, quando cumpriu mandatos de deputado federal.
 
O importante, contudo, é a soma de conhecimentos sociofilosóficos, no sentido mais amplo, que Menotti demonstra nessas análises. Partem os estudos, por exemplo, de Soluções Nacionais, de A Crise da Democracia que, escrita em 1929 e editada em 1931, com “rápidas modificações”, inicia o livro.
 
Submete Menotti o tema a aprofundado exame, de natureza sociológica, que indaga da evolução do regime, do conceito, dos processos de formulação, dos fundamentos, buscando apoio ou refutando concepções que o explicam. Demonstra, então, no confronto das teorias e na crítica das doutrinas, uma largueza de vista e penetração de apreciação que dificilmente encontramos em nossos cientistas sociais ou políticos.

Cuida dos mitos demográficos e examina o que há de “verdade substancial” e de “verdade aparente” no conceito de democracia, palavra que esmiúça no sentido político e seu séquito: “vontade geral”, “sufrágio universal”, “liberdade, igualdade, fraternidade”, “forma de voto”, “representação”, são “as novas potestades políticas do século XIV”, das quais muitas “começam agora a perder seu prestígio” (p. 43).
 
E profere esta sentença lapidar: “A inquietação humana, saltando de mito para mito, dá-nos a ilusão de que jamais assimila e obedece a uma nova verdade, senão que, através da provação angustiada da experiência, se libera, continuamente, dos próprios e sucessivos erros” (p. 43).
 
Tenta a definição de “democracia” – “na imprecisão senão a impossibilidade” de a definir; estudar em profundidade os “mitos democráticos”, sem esquecer “a fatal hipertrofia do Poder Executivo”, “a falsa concepção da democracia política” e as “mentiras convencionais das democracias modernas”.

Entre as “fórmulas modernas de neomitologia” (p. 83), lembra o sufrágio universal – que “não realiza o ideal político da democracia” (p. 88), o misticismo do “votosecreto” (p. 92), e cuida das “bases sofísticas da democracia política”: os mitos da igualdade e da liberdade. Nada, porém, como a afirmação de que a democracia “é uma tendência geral de todos os componentes modernos dos agregados humanos. Propaga-se por contágio” (p. 99).
 
Reduz às suas proporções “as várias faces de um novo mito” – o Estado –, quando, então, aprecia o mito “proletariado”, do comunismo e do fascismo.
 
Por fim, busca solução para o problema e a que propõe dá bem a ideia da ânsia de estabilidade e ordem que então prevalecia: a falha das Câmaras Legislativas, os membros dos parlamentos, “frutos da demagogia, mestre dos artifícios eleitorais, ou, melhor, numa palavra, políticos, segundo a atual concepção dessa palavra” (p.159), concepção desfavorável que exemplifica com citação de Emil Ludwig e Charles Benoit. 

O que o levaria depois à formulação da organização no “Novo Estado Brasileiro”, na segunda parte, dedicada à “Crise Brasileira”.
 
Nesta, começa pela análise da formação nacional, com os dados fundamentais: psicológicos, sociológicos, étnicos, políticos, geográficos e morais que apresenta.
 
E aí, ao contrário de tantos, exalta a importância do papel de Portugal. Vale repetir a assertiva:
   
     § 3.° Delineia-se um dos grandes fenômenos sociais brasileiros, de consequências cardeais para a nacionalidade: a ausência de preconceitos raciais, determinando a fusão das etnias na formação de uma rica ancestralmente variada raça futura. A Portugal – à capacidade de amalgamação da sua gente – se deve esse salutar processo, que salva o País do problema do quisto africano. Mamelucos, brancos e negros irmanam-se numa instintiva antevisão da sua função histórica. Nasce, assim, um tipo específico de civilização americana, caracterizado pela ausência de preconceitos de cor, de credo e de origem; encarnando, prática e em toda a sua plenitude, o verdadeiro espírito da humana fraternidade (pp. 169-170). 
    
Isso leva ao elogio da colonização portuguesa:
     
O problema racial brasileiro é dos mais complexos do universo. Foi o modelo de colonização portuguesa que abriu caminho a essa complexidade pela implantação, noestrato racial primário, dessa generosa ausência de preconceitos étnicos, que foi até à fusão com o índio e com o negro. O dono da terra conquistada não se tornouhostil ao alienígena. Não eram meteques na pátria de todos. O primitivo senhor, o índio, era já de índole acolhedora. O português, o mameluco, o negro e o mestiço não o foram menos.

Devemos à colonização portuguesa não sermos hoje uma colônia dividida pela barreira epidérmica e intransponível do senhor branco de casquette de lona e chibata namão tomando refrescos nos bungalows litorâneos, mais ou menos escravizando as grandes massas crioulas, de outra pigmentação. Preparada psicologicamente, nossa gente,para a aceitação das contribuições étnicas poligenéticas, os fatores econômicos determinaram a crescente introdução de sucessivas massas emigratórias, que logo se radicaram ao solo e procuraram fundir-se nos elementos étnicos existentes.
 
Tirante os indígenas, todos são estrangeiros no Brasil, com a diferença que uns vieram antes, outros depois. Este lapidar axioma do Dr. Washington Luís coloca em seus justos termos um dos problemas essenciais da nacionalidade.
    
Com o elogio ao amigo e chefe, ao qual foi sempre leal: Washington Luis.
 
Daí passa a examinar as características da alma brasileira.

As características psicológicas que identifica são: a versatilidade, o ceticismo e a tristeza.
 
As qualidades são a bondade, a generosidade, a capacidade para o trabalho e o espírito de fraternidade. “A alma brasileira, se tem algo de fetichista, nada tem de mística. Sua principal característica é a tolerância. Sua ânsia maior, a liberdade. Esse é um rico elemento espiritual que o sectarismo dos clãs políticos não deve, sem risco de provocar graves reações futuras, tentar coibir”.
 
 Quando se dedica ao problema moral, porém, as definições são estranhas a esse quadro. Vejamo-las nas primeiras frases conceituais.

Fala de “cobiça dos nossos povoadores” como “formidável força de expansão nacional” (p. 221): 
    
O amoralismo do nosso povo decorre muito da nossa defeituosa estrutura política. É ela que contribui para a nossa “falta de caráter”, isto é, para a ausência de diretrizes individuais, fixas e constantes (pp. 221-222).

A incoerência, o oportunismo, a traição aos ideais professados, tão constantes em nossos políticos, não derivam, geralmente, de qualidades morais inferiores em tais indivíduos. São frutos das circunstâncias (p. 222). 
    
E cita Medeiros e Albuquerque (Parlamentarismo e Presidencialismo no Brasil), no virulento combate ao Presidencialismo: “Os homens de hoje não são mais nem menos canalhas que os da monarquia. O que há é que ‘a função cria o órgão’. A função – regímen presidencial – é nefasta. Daí vem a corrupção geral de caracteres.

Vê no problema jurídico um erro fundamental, a irrealidade, um “contra-senso berrante”, “o maior paradoxo jurídico do universo”, “uma caótica e grotescamonstruosidade legal”, pelo Direito ideal, utópico, abstrato, superior ao meio, “leis litorâneas aplicadas unitariamente ao hinterland”, concluindo: “não é o brasileiro que não se adapta à lei, mas a lei que não se adapta ao brasileiro” (pp. 227 e segs.): 
    
As consequências psicológicas dessa unidade legal são a turbulência: A lei não cumprida desmoraliza a justiça e barbariza o povo. Lei que conflita com ascondições de vida ambientes é lei que deforma a realidade individual e social e cria focos de reação ou incita à violência (p. 235), advertindo ser essa a explicaçãodos surtos separatistas e autonomistas das províncias. 
    
Não pára aí, porém: vai ao problema econômico, com os seus paradoxos.

E já àquela época, sessenta anos passados (A Crise da Democracia foi escrita em 1929 e publicada em 1931 – p. 6), clamava (p. 251):
 
Um país que tem uma legislação caótica somente pode ter uma economia confusa. Se é função da iniciativa particular produzir, é função do governo coordenar,estimular e dar expansão e mercados à produção. No Brasil, o particular trabalha e o governo atrapalha (p. 251). 
    
Para concluir, depois de sintetizar essas análises:    

Raras nações do mundo dispõem de elementos tão próprios a preparar para o amanhã, uma nação tão rica, tão ativa e tão poderosa como a brasileira. Seria um crime descrer-se das possibilidades imensas que oferecem ao universo a gente e a terra do Brasil (p. 262). 
    
A análise é de penetrante atualidade e mergulha fundo nas raízes nacionais, que desvenda com inacreditável precisão, em muitos passos, em números, atual e exata.
 
Por outro lado, admira a quem o leia, a amplidão do conhecimento da “realidade” geral e da “verdade” nacional, em estudo que abrange todos os aspectos da vida do País, desde o caráter aos problemas econômicos e sociais.

Nota-se, contudo, quando se trata de equacioná-los, a influência do pensamento da época: 
    
Antiliberal e antidemocrático da nova geração brasileira, não somente coincide, pois, com a corrente do teorismo disciplinador que empolga o continente europeu,como repristina o verdadeiro ‘espírito de nossa terra’ cernindo de sua estrutura política um democratismo irreal, fantástico e insincero, que ‘jamais’ foi processado (p. 269). 
    
Anseia pelo “homem genial, o homem do destino”; ”empolgando o Estado, seria, por si, a melhor das contribuições”.

Por isso, suas “Contribuições para a Organização do Novo Estado Brasileiro” propõem um Estado corporativo que, por certo, se inspira no modelo que, então, surgia, com ímpeto, na Europa e que repercutiria no Brasil com o integralismo de Plínio Salgado, seu valente companheiro de 1922 em diante, na “Revolução Literária” e, depois, na Escola “Verde-Amarela”, nitidamente nacionalista, “vulgarizadora da realidade brasileira”.

Aqui se impõe sintetizar a análise e buscar explicação para essas preocupações. Não será difícil descobrir que, no fundo de tudo, está, com o Movimento de 1922, a necessidade de “repensar o Brasil” no primeiro Centenário da Independência.

Diz em discurso na Câmara dos Deputados (DCN de 10.2.1954): 
    
A partir de 1922, uma revolução profunda se operou no País, em todo seu arcabouço econômico, político, cultural e social, o que tornou imperativa a especulação ousada de mentalidades revolucionárias, demolidoras, dessas mentalidades cuja função é desarmar os andaimes e os tapumes que escondem o edifício novo da vida em eterna renovação.

A presença de tais líderes, porém, nessa crise de transição, mais que nunca reclama a assistência e o conselho da experiência de estadistas antigos e experimentados, porquanto toda a revolução não passa de uma evolução acelerada, dado que a vida continua sempre a viver eternamente suas constantes. No próprio edifício novo, a base da sua estrutura, que lhe garante a estabilidade, são os alicerces, cristalização de experiência milenar do homem fabricador.
 
    
Instintivamente, por certo, a princípio, deve ter começado esse exame de consciência, essa autoanálise, essa busca de identidade. Afinal, passados cem anos de estranha rebelião que nos separou da Metrópole, teríamos conquistado, de fato, a nossa independência? Nos costumes, na atividade econômica, na vida literária, na tomada de posição em face do mundo? Teríamos formado a nossa Weltanschauung, visão geral do mundo, por nós mesmos?

Dessa forma, o Movimento não se restringe à reação literária dos que o iniciaram e depois, eles mesmos, se viram enredados em sua força, mais conduzidos do que condutores.
 
Tinham todos a consciência de que algo se passava; mas as lâminas de fogo que lhes iluminavam a razão nem sempre os levou à mesma linguagem, antes lhes deu línguas diversas. Mário de Andrade, Oswald, Plínio, Cassiano Ricardo, Cândido Motta, Menotti e todos partiram do mesmo ponto, seguiram rumos diversos, mas aportaram, pelo menos, a uma conclusão: a de que o Brasil não era o mesmo e precisava mudar e reencontrar-se. É o próprio Menotti quem, em discurso (DCN de 22.2.1962), examina a extensão e a profundidade do Movimento, quarenta anos depois: “[...] o inconformismo contra uma estrutura econômica e social, que não permitiria ao Brasil ver sua própria verdade, sua realidade exata.”

E, após citar o Professor Cruz Costa, no seu Panorama da História da Filosofia do Brasil, que vê no Movimento Modernista de 1922 “um momento da história das ideias no Brasil”, afirma: 
    
Esse era o problema fundamental do momento. Fazia-se mister quebrar a crosta exógena e entrar na investigação dos problemas nacionais relegados à margem pela elite cultural do tempo, então absorvida pelo fascínio da França. Precisávamos redescobrir o Brasil soterrado sob densa montanha de exótica cultura. 
    
Para fazer um balanço: 
    
Passaram-se quarenta anos. O Brasil se agigantou. Nossa obra não foi inútil. Estimulou em nossos irmãos a ânsia de conhecer mais profundamente a si mesmos e opróprio chão que pisam para amá-lo melhor. Mas, ao lado da grandeza, entramos num clima de confusão. As revoluções do mundo atômico e a interferência de forças alheias, no âmbito das outras nações, se por um lado as informam do progresso geral humano, por outro podem desnaturar-lhe a índole e ferir-lhe a originalidade. Não identificamos, como bem nosso, o conteúdo do nacionalismo de hoje, não que não seja sincero em muitos patriotas, como sincero era o sentido gaulês de vida que animavaas elites dominantes em 1922 e contra a qual nos rebelamos.
 
Elas traziam, como ideal, perfectibilidades que o estado ainda imaturo da nossa cultura e o nosso atraso econômico e social não suportavam, pois seriam remédios excessivamente fortes para um organismo extremamente anêmico. Somente com soluções especificamente brasileiras poderíamos então, como hoje, curar males e disfunções brasileiras. Do que nos informa a cultura do mundo, tiraremos, para nos atualizarmos, aquilo que seja adaptável às condições específicas no nosso meio. Essa foi a doutrina do nosso nacionalismo que queria estar bem-informado, para estar atualizado, mas que repelia as influências forasteiras no que tivessem de deformantes e desnacionalizantes. 
    
Clama, então, contra o que via:
     
Todas as fórmulas de Arte caminham por campos de destruição, de negação, através de fórmulas verdadeiramente mórbidas. A Pintura desintegrada pelas invenções ultraístas e, por fim, eliminada da sua clássica expressão linear e figurativa pelo abstracionismo; a Escultura, desviada da sua função representativa para se tornar um enigma plástico repugnante, cuja função é nos chocar no intuito de destruir, no nosso espírito, os últimos resíduos do academismo representativo de um ciclo social que findou; tudo isso é apenas negação do passado e nos lança, desesperadamente, à procura das feições exatas do futuro, do seu ritmo novo. Para nós a aurora desse novo ritmo está na arquitetura funcional, na arte de dar a casa ao homem. 
    
Com a dolorosa conclusão que enuncia: “Eis o que nós, os modernistas nacionalistas de 1922, encontramos após uma caminhada de quarenta anos: escombros de um mundo que foi e os primeiros sinais de um mundo que está por vir” (DCN de 22.2.1962, p. 179).

E coincidiram os impulsos literários com os revolucionários, fruto de ímpetos diferentes: 1922, 1924, culminando em 1930.

Ao fundo, a busca do Brasil brasileiro, autêntico, incorporando tradições, mas seguindo rumos, caminhos próprios.

Daí o tatear de todos, como se cada um se dispusesse à sua tentativa e, firmado o êxito, acenasse aos companheiros de jornada.
 
Sua posição evolui consideravelmente. Condena o “cerebralismo eclético que gerou o monstro híbrido da Constituição de 1934 – uma caótica mistura de esquerdismo com reacionarismo – incapaz de compreender a realidade brasileira” – e os dois anos seguintes dar-lhe-iam boa parte de razão, com o Golpe de 1937, criando não o Novo Estado que programou, mas o Estado Novo getuliano – e a que, aliás, explicitamente, faz referência no último período do livro: “E a forma do Estado Novo recorta, nas suas linhas, a fisionomia exata da atual realidade brasileira, até hoje sonegada aos olhos do Brasil” (p. 284).
 
Fico a meditar se essas palavras, vindas a lume em 1935, não teriam sido a semente que faltava à inspiração do ditador. Menotti já era, à época, nome nacional. Desempenhara dois mandatos na Assembleia Paulista, homem de confiança de Washington Luis e Júlio Prestes, e Getúlio não o teria perdido de vista.
 
Demais disso, gozava da fama que lhe haviam dado os livros já publicados, com a explosiva repercussão na crítica mais consagrada e na acolhida popular.

Aliada a outros pronunciamentos (como os de Plínio Salgado e seus companheiros), vinda de São Paulo – que acabara de rebelar-se e ser contido pela força das armas, após o sacrifício de tantos lutadores abnegados –, essa manifestação pesou, sem dúvida, no ânimo do matreiro senhor dos pampas, que não desdenharia o apoio do consagrado poeta de MoysésJuca MulatoAs MáscarasAngústia de D. JoãoO amor de Dulcineia, que dominara o ambiente literário da época. Sem falar nos livros de prosa, que iam do ufanismo regionalista de O Despertar de São Paulo (1933) aos contos, novelas e romances de ampla acolhida nacional: Flama e Argila – romance (depois A Tragédia de Zilda), Nariz de Cleópatra e Pão de Moloch (crônicas), O Homem e a Morte (romance), Laís (romance) etc.
 
Havia todo o interesse político em acolhê-lo, se vinha na linha de seu pensamento autoritário, carismático, de “homem do destino”. Menotti del Picchia e Plínio Salgado haviam-se formado como “combativa bancada ‘verde-amarela’ na Câmara baixa paulista”, que ele mesmo definia: “Plínio e eu éramos descrentes daquele liberalismo utópico. Plínio já pendia para a direita, e eu para o ideal trabalhista” (A Longa Viagem, 2.ª etapa, p. 222). E assinala: “Estou certo de que, no desenvolver do tempo e nas posições políticas que ambos, no futuro, tomaríamos, já em Plínio Salgado rompiam os germes do ‘movimento integralista’ que levou o autor do Estrangeiro a tornar-se o chefe carismático que empolgou grande parte de nossa mocidade” (pp. 222-223).
 
Completando: 
    
Quanto a mim, com Cândido Motta Filho, Cassiano Ricardo, Ellis Júnior e outros, ao separarmo-nos de Plínio, organizaríamos o movimento nacionalista de “ABandeira”, postulando uma democracia orgânica que realizasse, numa síntese ideal, a justiça social pleiteada pela esquerda, enquadrando-a dentro da ordem e disciplinapreconizada pela direita. Nosso slogan seria: “Contra as ideologias forasteiras e dissolventes opõe o pensamento original de sua pátria” (A Longa Viagem, ed. cit., p.223).     

Mas o pensamento político de Menotti evoluiu consideravelmente na linha que apontou “do ideal trabalhista”.
 
Sua visão alargou-se, reviu conceitos, renovou indagações, ainda que não perdesse a marca fundamental que o verde-amarelismo indelevelmente deixou em toda a sua obra – o nacionalismo.

Nem outro fora o sentido do Movimento de 1922, não apenas a rebelião da Arte Moderna contra os moldes tradicionais, a “revolução espiritual”, na batalha entre O Curupira e o Carão
    
De um lado Carão, com mais de duzentos anos, cinzento, encorujado, de penas híspidas e sujas. Carranca e misoneísta, miolo mole e intransigente. De outro lado o Currupira: ágil, matinal, irônico, onímodo. O Espírito Velho contra o Espírito Novo. Luta de morte. Revolução (O Curupira e o Carão). 
     
Ele o explicaria muito depois no comovido discurso de homenagem a Jorge de Lima, na tribuna da Câmara dos Deputados, em 19.11.1954: 
    
Em 1922, quando celebrávamos o primeiro centenário de nossa Independência, verificamos que a própria estrutura do País, a economia política e social, sofria uma transmutação visceral, pelo ocaso da nossa cultura cafeeira, pelo início do industrialismo, pela difusão dos conhecimentos, mercê da técnica, pela socialização dos meios de transporte dado o uso intensivo do motor de explosão. Rompia-se, enfim, toda a estrutura feudal brasileira, com o advento das reivindicações das massas, direitos sociais que este Congresso está sabendo tão bem encarar através de leis que atendem às aspirações do proletariado brasileiro. 
    
Eis a amplitude da ação de 1922, vista mais de 30 anos depois, o pensamento amadurecido e os resultados conhecidos.

Em toda a vida, contudo, não descreu desses princípios.

É acompanhar-lhe a atuação na Câmara Federal, onde, de viva voz, ouvi e hoje, lendo-o nos Anais, revejo, sem ímpetos de radicalização, mas com o entono da convicção que os anos firmaram inabalavelmente.

Aí se vê, ao lado do experiente conhecedor de nossa realidade, o arguto debatedor parlamentar, que enfrenta o bulício dos debates, tranquilo, seguro, pronto, destro.

Não foge aos temas políticos, nem se desvia ante as provocações partidárias. Mas o intelectual reponta sempre. Lembre-se, por exemplo, o seu discurso no “Dia Nacional de Ação de Graças”, em 1953 (DCN de 27.11.1953, p. 491), com a definição inicial: 
    
A ideia transcende das nossas preocupações comuns, porquanto se inscreve nos sentimentos mais profundos da nacionalidade brasileira. Na raiz da nossa raça, há, efetivamente, a presença da cruz trazida pelos descobridores, inspiradora daqueles que integraram o País, ainda selvagem, no signo do Cristianismo, o que quer dizer no ritmo da civilização universal.

Toda nossa História está marcada pela fé nas forças do espírito. E aquele grupo admirável de jesuítas que se entregou à catequização das massas selvagens fez com que, nesta parte da América, nascesse, sob a égide da cristandade, uma das nações mais promissoras do universo.
 
     
Mas, o que é muito importante, a seguir fala o analista político, o estudioso dos temas políticos universais e nacionais, e nota-se, então, a profunda transformação de sua linha ideológica na mais autêntica pregação democrática, quando se refere ao “vendaval autoritário que deu, pelo carismatismo histriônico dos führers, a curta supremacia de executivos ditatoriais” (DCN de 27.11.1953).
 
Para, depois, examinar, com mestria, o pensamento dos doutores a respeito do “mandato imperativo”, na lição de Hauriou, Jellinek, Gierke, Duguit, concluindo com o elogio do Parlamento.

Faz, então, sugestivo paralelismo entre a ação do Parlamento e a da Imprensa, ele, “dotado, na Câmara, de uma ambivalência funcional, porquanto o jornalista, lá fora, na obra de pesquisa e divulgação, continuava o legislador”, “dispondo” de duas tribunas: a do Congresso, onde fala a voz da Nação, e a da Imprensa, a que articula a voz da opinião, vozes no fundo idênticas, ou melhor, duas faces da mesma linguagem: “a que exprime as necessidades e as aspirações do povo e a que as transforma em leis” (DCN de 27.11.1953).
 
A definição de sua linha ideológica é dele mesmo, quando alude a “Congresso Cultural” realizado no Chile. Havendo desejado dele participassem “intelectuais de todas as cores e partidos”, recebeu comentário de um jornal, indagando “se de ‘integralista’ havia virado ‘comunista’, ou talvez ‘inocente útil’, fórmula cândida ou ambígua do ‘colaboracionista’ inconsciente”:

Menotti retruca: 
    
Há nisso tudo equívoco ou propósito de confusão: nunca fui “integralista” – como poderão atestá-lo os que com todo o direito nesta Câmara o foram.
 
Não sou “comunista” porque, como o próprio Lênin, compreendo que a socialização integral é fruto de supermaturação econômica, etapa final de uma evolução material e cultural que estabeleceria no mundo a utópica “idade do ouro”. Não se comuniza a miséria. Socializar o precário – isso que está aí – seria, entre nós, desorganizar o início de uma débil estrutura econômica que devemos, ao contrário, amparar e estimular de todas as formas.
 
Minha posição doutrinária ficou expressa em livro, hoje superado, mas continua na necessária coragem de revisar valores procurando libertar-nos do medo de esquadrinhar conceitos a que demos solenidade mística: “fascismo”, “comunismo”, “democracia”, “liberdade”, “liberalismo”, “sufrágio universal”, alusões que existem e não existem, que funcionam a meio no caótico ecletismo desta hora de transmutação de um ciclo histórico, hora crucial em que um mundo que demograficamente cresceu demais mercê da Ciência e da Técnica, continua metido na roupa estreita de instituições que já não funcionam com muita fome, pouca comida e violentas contradições sociais entre a miséria que mendiga e o plutocrata que esbanja. 
    
Não descura nunca do estudo da situação nacional, sua preocupação permanente, e seus discursos aliam à penetração da análise crítica a beleza literária de que o estilo vestia a frase. Como líder do PTB, analisa, em 4.5.1954, a crise brasileira – crise econômica e crise moral. E continua no percuciente e aprofundado estudo de 14.5.1954, quando se dedica à apreciação da nossa vida política. Após tratar da instituição da Federação, na voz e ação de Rui, que coteja com a opinião de outros autores – Pontes de Miranda, P. Laband, Durand, Pinto Ferreira e Burdeau –, afirma que o Brasil é um “país deficientemente legislado” e explica, em pronunciamento exato e profundo: 
    
Um povo mal legislado é um povo desorganizado e turbulento. Lei não é concepção utópica de módulo normativo, mas cristalização da moral do grupo, isto é, obrigatoriedade imposta ao nexo jurídico espontâneo que nasce do atrito social dos agrupamentos humanos agindo, em comum, dentro de um sentido de cultura e dos imperativos dos próprios interesses. Lei não se inventa. Decorre de uma realidade. 

É um nódulo social, por assim dizer orgânico, imposto pelas constantes que nascem nas comunidades humanas como regras necessárias a garantir os interesses desse grupo, a assegurar-lhe a harmonia e a paz. Num País de imensa extensão territorial como o Brasil e com seus grupos humanos tão tipificados por costumes e processos de vida tão diversos, lei igual imposta a todos, criada e imaginada fora do ambiente que ele terá que reger, é criação cerebrina, imposição coercitiva, que, se não tiver aplicação exata, somente poderá provocar mal-estar e turbulência. Somos legisladores que inventamos leis na mais bela metrópole do mundo, iluminados pela cultura dos povos mais avançados da terra, para aplicá-las indistintamente, ao sábio e plutocrata urbano e ao índio nu ou ao caboclo ainda não desasnado pelo alfabeto. É por isso que, neste Parlamento, com a mais atualizada sabedoria e com as mais patrióticas intenções, inchamos nossos códigos com uma inflação legal de normas que morrem no Diário Oficial e que se aplicam apenas às exíguas áreas demogeográficas, mais alarmante que nossa inflação financeira. O Brasil é uma nação que não é eficientemente legislada, razão pela qual a oposição não faz oposição e o Governo tem que hipertrofiar seu poder para governar. O irrealismo jurídico no qual nos perdemos é feito por um cipoal de normas que mais estabelecem caos do que ordem. Todo o mal do Brasil, inclusive seus escândalos, está na falta de uma organização racional que permita o exato conhecimento das necessidades das suas populações para resolver seus problemas através de leis exatas, que se aplicam aos cidadãos e que funcionem sem provocar reações uma vez que venham realmente atender suas necessidades. 
    
E conclui duramente: 
    
Aí está, senhores deputados, nosso problema e nosso drama. A inanidade do nosso esforço legiferante, oriundo de uma “força da abstração”, encontra sua causa no absurdo do Brasil abandonar todas as fontes vivas do seu direito, que mana das suas regiões, para impor-lhes regras unitárias, inadequadas, perturbadoras e deformadoras da sua realidade jurídica. Com tal processo, somente poderemos ou retardar infinitamente nosso progresso, sabotando a espontaneidade fisiológica de nossa evolução, ou caminhar, diretamente como caminhamos, para a anarquia e para o caos. 
    
Passa, então, a debater matéria polêmica – “a errada divisão territorial do País”, que começa a esclarecer na “abordagem da organização nacional”, “fruto de alguma prática política e de muito sofrida meditação”.

Prossegue, em 16.7.1954, sustentando que nossas crises, inclusive a crise moral que nos assola, “derivam de uma falta de estruturação mais racional do Estado brasileiro”.

Não abandona a luta e a defesa das teses. Volta a elas em discurso de 21.5.1956, em exame renovado e ampliado, nos “pontos cruciais” que indica. E surge sua visão de problemas àquela época apenas suspeitadas e hoje leit motiv das campanhas.

Vejam-se estas considerações: 
    
Nos municípios que, largados a uma política agrária desajustada, primitiva, quase larvar, paira a preocupação da “reforma agrária”, que aqui, geralmente, concebemos em termos teóricos de arquétipo legal, já fala e reclama a linguagem ecológica, que aspira essa reforma mas que a quer em termos orgânicos, resultantes, emcada região, das condições específicas das culturas, das relações tradicionais entre patrões e salariados, no sentido de não matar, na raiz, uma produção já tão escassa ou por excesso de direito ou por falta do recíproco funcionamento dos deveres. As classes agrícolas têm, pois, os olhos voltados para a reforma.
 
E leiam-se estas palavras que retratam quadro de atualidade incômoda: 
    
Que deduzir de tudo isso? O Brasil é um paradoxo. Enquanto a iniciativa particular rompe as peias com que, não raro, a manieta o Estado e desborda em exuberante vitalidade construindo usinas e fábricas, vastas lavouras, alta cultura, dotando o País do maior parque industrial deste lado da América e a maior indústria agrícola sistematizada do universo – o Estado definha nas vascas da inflação, anemiza na sangria das divisas desbaratadas e perde o crédito nos desmandos de sua crise moral, a que tais fatos levam os homens.

E a confiança no Brasil.
    
Se racionalizarmos nossa organização, dentro em breve poderemos nos emparelhar aos Estados Unidos e à Rússia.
 
Em primeiro lugar, é mister que não quebremos nosso retomado ritmo democrático. Dentro de uma ditadura, nossos problemas se perderiam na sua noite e não poderíamos estar aqui chamando a atenção do povo brasileiro, através dos seus representantes legítimos, sobre defeitos que entravam o maquinismo estatal e sobre o erro que cometerão nossos homens não tentando extirpá-los. Minha tese, pois, é nova e otimista: boa e grande a terra, inteligente e trabalhador o homem. Imperfeita é a organização.     

Para concluir com objetividade, no estilo colorido do escritor completo, enumerando os pontos de sua reforma constitucional: 
    
Devemos fazer uma Constituição específica, lógica, uma roupa ajustada ao corpo atlético deste jovem Hércules, que é o Brasil. Não lhe cortemos uma roupa estreita copiada em figurinos ingleses ou franceses. Não costuremos uma roupa larga demais, que pode ser ridícula. Não o metamos numa camisa-de-força, porque a violência pode trazer deformação. Cortemos uma roupa justa. Não copiemos o figurino de nenhum país, porque ficaria ridículo vestir uma casaca num índio. Assim, no intuito de colaborar na reforma fixei estes pontos:

a) plasticidade legal para que o nosso Direito seja vivo, isto é, que não seja mais que nossas vivencias econômicas, éticas, políticas e sociais, assegurando a harmoniosa convivência das nossas comunidades regionais e estimulando, não travando seu progresso; 

b) racionalização, pela simplificação, do Poder Executivo para que seja forte pela sua legitimidade, eficiência e responsabilidade e nunca precise ser forte em violência, a qual, não raro, é fatal contrapartida da turbulência decorrente de má organização; 

c) nos termos da Constituição vigente, reagrupamento das unidades da federação que tenham identidade econômica e cultural em blocos geoeconômicos para defesa, em conjunto, dos seus mútuos interesses, delineando-se, assim, áreas definidas para a lógica aplicação de determinadas leis federais. A representação política dos blocos não seria numericamente afetada. Atentando à índole das regiões, os Estados por essa forma agrupados poderiam conservar suas fronteiras para os fins de sua economia específica, seus usos e suas políticas. Com essa técnica geopolítica, estabeleceríamos o equilíbrio entre os Estados, quebrado este pelas tremendas diferenciações geográficas e econômicas que tornam irmãos tão desiguais os membros da Federação.

Retorna em 8.8.1956, fazendo uma “radiografia do Brasil”, fugindo aos apartes que buscam cortar-lhe o rumo da análise serena, séria do tema, que conduz à reforma que pretende e que lhe sustenta o “ufanismo”: 
     
Creio no Brasil e na sua grandeza, seu romântico ufanismo, como homem prático que sou e fui, lavrador, industrial, diretor de empresas, estudioso dos nossos problemas. Creio que a confiança em nós mesmos nos fará vencer o complexo colonial de que estamos tocados e que nos afasta das realidades do mundo, perante o qual devemos comparecer, não como Nação tímida e desconfiada mas consciente da sua força, mas como o maior País latino de todo o universo, donos de uma extensão territorial que faz inveja ao mundo, dentro da qual erguemos a maior civilização dos trópicos e em cujo chão tesouros de energia pulam das cachoeiras e ainda jazem, como para uma providencial reserva da qual começamos a lançar mão guiados pela técnica, todos os tesouros minerais de que necessita o mundo moderno.
 
Que o nosso patriotismo e a nossa inteligência sejam dignos dos bens que Deus nos deu. Que não estrague a paixão política ou vaidade dos homens, o que temos em mãos e que é radiosa esperança do mundo.
     
Assoma, com frequência, à tribuna, e o Brasil – na sua realidade, nos seus problemas, nos seus grandes vultos políticos ou literários – é o motivo único, a preocupação constante. Nada lhe escapa; da recordação de José Lins do Rego, Brecheret, Olegário Mariano, Portinari, José Bonifácio e outros, no elogio aos jogadores de futebol vitoriosos na “Copa do Mundo” de 1962 (DCN de 24.6.1962), em que “filho de proletário, preto-cantor do homem da terra, defensor dos direitos dos trabalhadores”, canta a gente nativa – “o mais versátil e surpreendente artesão do universo”.
 
E, revendo-lhe agora os discursos parlamentares, vejo-me aparteando-o, para louvar-lhe o trabalho “objetivo e patriótico”, em 26.6.1962 (DCN de 26.6.1962, p. 301), quando, ausente da Câmara, suplente que era, Menotti ocupou a tribuna para “rememoração” de plano que sugerira, “atento às reais necessidades do povo”.

E num dos últimos discursos apelava, ao final (DCN de 13.8.1962, p. 486): 
    
À margem dos partidos neste hiato de minha vida política, falo como cidadão deputado não influenciado por nenhuma liderança, apenas dentro do meu velho e incontaminado nacionalismo: resolvamos a emergência apreensiva e grave, não com os olhos voltados para futuros esquemas de mando ou no pleito que está à vista, mas pensando no sofrimento que nossos erros e a tardança dos remédios impuseram às nossas heroicas populações. 
    
Palavras finais 
    
Esta, Sr. Presidente, a sucessão dos vultos nobilíssimos que me destes ao eleger-me para a Cadeira 28.
 
Goulart de Andrade, recebendo Xavier Marques, afirmava:

Com Manuel Antônio de Almeida e Inglês de Sousa, sombras sagradas que iluminam o lugar, que ora ocupais, constituís sem dúvida um dos poderosos fatores da unidade da Pátria, pois cada qual no seu recanto a exaltar as belezas da terra, dizendo d’alma bravia e generosa da gente, sonha projetar na eternidade o corpo esplêndido do Brasil bem-amado (op. cit., loc. cit., p. 123).

A essa tríade ficaria bem se acrescentasse agora a sombra sagrada de Menotti del Picchia, Poucos como ele terão feito tanto pela unidade da Pátria, não apenas na pregação política de sua vida pública que é um apelo à brasilidade; mas, ainda mais, pela ligação com a gente, pelo espírito que povoa e anima sua obra literária, tão difundida e comovidamente aceita em toda a vasta extensão nacional, que terá sido e será sempre como um elo de coesão brasileira, que ecoa tanto nos versos de Juca Mulato, ditos e cantados em toda a parte, como nas figuras romanescas que criou e se misturam naturalmente à nossa paisagem física e moral.

Menotti del Picchia: trovador e poeta, contista, novelista e romancista, clássico, renovador e inovador, fazendeiro e jornalista, pintor e escultor, político e estadista, como se pretendesse ser a síntese do século que viveu e que encarnou, refletindo-lhe os anseios e as dúvidas, as incompreensões e os desafios, as revoltas e os desmaios, no turbilhão de uma vida que tem os entretons da tragédia e da comédia.
 
Mas a honra dessa sucessão mais ainda se acresceu com o privilégio que me destes de ser aqui recebido por Afonso Arinos. Assim me renovastes a alegria do convívio que dura velhos 45 anos, tantos quantos minha modesta vida pública aprende na lição de seu exemplo e de sua sabedoria.
 
Em Afonso Arinos, encontrei o líder dos embates cívicos, no palanque dos comícios brilhantes ou no desafio da tribuna parlamentar, em que exceleu e excele; o estadista destas nossas Repúblicas que se sucedem e das quais é um dos poucos autênticos repúblicos, honrando a linha ancestral e criando o arquétipo para os que se lhe seguirem; o escritor primoroso, que sabe compor as tintas severas de Um Estadista da República ou as vivazes pinceladas do Amor a Roma; estudar O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa ou firmar a exegese dos textos constitucionais; sem falar no dom mavioso da eloquência que lhe brota da palavra fácil e lúcida.
 
Já o contemplei no arriscado e aventuroso de campanhas nos longínquos rincões de Minas; já o admirei na cátedra universitária, como me seduzi nos choques parlamentares; e já o vi, no colóquio amorável da conversa inteligente com que entretém os que lhe falam.
 
Mas, sobretudo, nunca me faltou com o conselho e o estímulo, até mesmo para ousar o desafio maior desta Casa augusta, difícil e compensador. Por suas mãos de amigo fraterno e mestre generoso entro a porta da imortalidade acadêmica.

Assim o determinou o Presidente Austregésilo de Athayde, que, com o tino de sábio, dirige e comanda, no curto período de trinta anos – nada em face da imortalidade –, os destinos da Academia.

Conquistou, no trabalho indefesso, no combate permanente, que cansa os jovens e espanta os maduros, no estudo, no talento e na genial capacidade de improvisar, o direito à perpétua direção dos trabalhos da Academia, como a participação nos debates do Palais de Chaillot para a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos lhe garantiu o universal reconhecimento dos homens livres.
 
Tudo isso premia com acréscimo os esforços que fiz, meio século, preparando-me para esta hora, com que sonhei, nos momentos mais intensos do delírio ambicioso de dar à minha gente mais do que ao meu próprio nome a glória deste momento supremo.
 
Aqui estou, envergando o vistoso fardão acadêmico que a nobre gente de minha cidade natal, a Itaúna da minha formação e do meu sangue, me veste, misturando o verde da natureza exuberante de suas montanhas ao ouro com que seduziu os bandeirantes que primeiro lhe batearam a água dos riachos e lhe mergulharam as mãos nas entranhas preciosas, desvendando-lhe os segredos.

Trago aos eminentes confrades o agradecimento pela honra que me concederam do privilégio do convívio, a homenagem do respeito pela obra que os trouxe a esta Casa e que engrandece as Letras pátrias.

Asseguro-vos que a consagração desta hora não esmorece em mim a responsabilidade que significa partilhar das tradições deste Sodalício, antes acresce-as.
 
Menotti del Picchia, chegando, em 20.12.1943, às culminâncias desta Casa, “deste Olimpo de deuses terrestres”, ainda “um pouco ofegante, porque toda subida é, no fundo, uma canseira”, dizia que “a maior dor deste instante tão decisivo é não ter o meu pai a meu lado”.

Sinto que Menotti fala por mim quando, também, vos encontro neste pedestal e me abris a porta desta imortal Mansão.

A mesma saudade, no travo amargo da ausência e na lembrança suave do júbilo que lhe encheria a alma acompanhando-me nesta chegada à cumeada da vida, afoga-me o espírito na triste alegria de chegar e chegar só, sem que comigo cheguem os que me deram a vida e o rumo: meu pai e minha mãe.

Consola-me e conforta-me que me amparam, neste píncaro, a suave e terna, firme e austera, compreensiva e amiga companheira de todos os meus dias, amargos e alegres, que me refaz a vida a cada instante, e, já agora, filhos e netos que me oferecem albores do amanhã.

A vida é assim: de nada vale nos rebelarmos, que desde que o mundo é mundo e enquanto for não será diverso, se não comungamos da eternidade da vida, nem mesmo os que a imortalidade consagra e a morte colhe, para que outros tenham a mesma ilusão de que lhes perdurará a memória, quando nada.

Caro e eminente Presidente Austregésilo de Athayde,

neste instante supremo me imortalizo, como se imortalizaram os que me precederam vivendo-o, e se imortalizarão os que, no futuro, tiverem o privilégio de conquistá-lo.

Há uma estranha inter-relação entre a glória desta Casa e a memória dos que a integram.

Ela se imortaliza à medida que se sucedem os que a compõem e ao acervo anterior outros se acrescentam. Cada um que chega, maior ou menor, lhe traz a contribuição de seu esforço e de sua obra.

E a cada um oferece ela um passado, estimula um presente e promete um futuro: imortalizamo-nos quando, a cada sucessão, quem chega relembra quem já não é, e uma palavra que diga, evoca e perpetua.

Esta Casa é imortal, porque soma a glória, embaçada ou luzente, dos que a compuseram, integram ou comporão.

Por isso mesmo, transmite aos que nela convivem, no amorável trato da inteligência, do respeito e do apreço, imortalidade.

Ainda agora, acresceu-lhe a imortalidade a comemoração dos cento e cinquenta anos de Machado de Assis, Patrono das Letras, nome tutelar desta Casa; e, em pouco, a relembrança dos cento e quarenta anos de Rui Barbosa lhe aumentará a glória na evocação do vulto maior da nossa vida pública, na obra do polígrafo e do estadista.
 
Por isso, quando celebramos hoje os 92 anos desta Academia, parece-nos que ela nasceu do sempre, incriada, imortal, acima de tudo e de todos, eterna.
 
Permita Deus, Sr. Presidente, eminentes confrades e amigos meus, que este instante fugaz e permanente, igual e diverso, comum e estranho, nela fique como afirmação de quem, artesão das Letras, hoje lhe participa da glória, com o compromisso superior de não a desmerecer, lutando por que cresça e se eternize, honrando-lhe os que foram e preparando o caminho para os que vierem.

 20/7/1989