Tomara que a ministra Cármen Lúcia tenha lido no domingo o artigo de Cacá Diegues, ela, que é a relatora do processo que será julgado hoje no STF defendendo a liberdade de um escritor contar a história de uma personalidade pública — político, artista, jogador de futebol, cientista — sem autorização prévia dele ou de seus familiares, como se faz nas grandes democracias. Não só porque o cineasta é uma das melhores cabeças que pensam o país, como seus argumentos não são em causa própria. Não é biógrafo e, ao que consta, não pretende ser; ao contrário, com sua obra, tem tudo para vir a ser um biografado. Entre outras coisas, ele diz que o direito à privacidade não é um valor absoluto: “A vida privada de todo mundo, do gari na rua ao presidente da República, não é mais importante do que a necessidade que temos de saber melhor em que mundo vivemos. E como vivem aqueles em que confiamos”.
Assim, no país que lutou tanto para abolir a censura do Estado, pratica-se nos livros a censura privada, já que, como disse o ex-presidente do STF Ayres Brito, liberdade de expressão é “antes de tudo liberdade de informação”, e a ela tem direito todo cidadão. Alega-se que é para resguardar a intimidade alheia. Tudo bem, mas essa dispensa de consentimento antecipado não concede ao autor imunidade, não o isenta de responsabilidade em casos de informações falsas ou ofensivas à honra. Não se trata de um liberou geral.
O que se quer evitar é a proliferação da prática perniciosa de busca e apreensão, ou seja, o recolhimento compulsório de obras literárias para impedir o acesso de terceiros. Essa restrição caracteriza-se como censura, e censura de natureza artística é constitucionalmente vedada sob qualquer disfarce. Outro efeito nocivo é que a exigência de permissão prévia está criando um “balcão de negócios de valores vultosos”, conforme denúncia dos editores de livros, que há anos vêm se movimentando por meio de seu sindicato para derrubar a “ditadura da biografia chapa-branca”.
“O direito à liberdade de expressão”, acrescenta por sua vez Cacá, “é a própria razão da democracia e a única virtude que não pode nunca ser flagrada em perigo”. Ele resume a questão assim: “Proibir a publicação de biografias não autorizadas, em nome da privacidade de suas vítimas, é o mesmo que mandar fechar todo o sistema bancário para evitar assaltos a bancos”.
Afinal, a Constituição de 1988 garante, junto com a liberdade de imprensa e de expressão, o direito à informação.
Censura nunca mais.