Era de se esperar, ainda que difícil de entender. Mas já tínhamos visto isso antes. Poucos dias depois do Onze de Setembro, todos ainda chocados com a morte de milhares de inocentes, algumas reportagens mostraram que alunos de escolas cariocas reagiram comentando algo como: “Bem feito! Pra ver se eles aprendem...” Agora não foi preciso esperar alguns dias. Poucas horas depois do atentado ao “Charlie Hebdo", as redes sociais já estavam cheias de comentários do tipo “A França colhe o que plantou.”
Igualmente difícil de entender. Porém muito mais rápido. Efeito do tal “cliquetivismo” militante. Uma parte nasce apenas do impulso de se manifestar com a primeira bobagem que vem à cabeça. Outra vem de quem propõe uma reflexão mais séria, que vá além da superfície. Nessa surgem coisas interessantes. E há muitos analistas que insistem em defender a importância de “entender que é ofensivo”. Ampliando esse convite, podíamos tentar também “entender que não é ofensivo” ter certos comportamentos, e mostrar isso ao outro. Seria uma forma de não relativizar a dor alheia, mas também refletir sobre responsabilidades, e fugir ao “nós contra eles".
Talvez a escalada dessa primeira reação incompreensível, de culpar a vítima, não tenha sido agora comparável em intensidade com a que sucedeu ao atentado contra as Torres Gêmeas porque o colonialismo francês não é o imperialismo americano, e Hollande não é Bush. Talvez também haja influência da imediata reação coletiva francesa, enchendo as ruas com sua solidariedade às vítimas e a defesa de valores democráticos que a nação há séculos encarna. E mais: houve até mesmo a reação de lideranças políticas e religiosas do mundo islâmico condenando a ação, bem como a manifestação de muitos fieis garantindo: “Não em meu nome".
Eles sabem do que falam. São da mesma fé que tantos muçulmanos vítimas de muçulmanos. Como os milhares de moradores de Baga e outras vilas no norte da Nigéria que estão sendo liquidadas pelo Boko Haram. Ou as 200 meninas sequestradas no mesmo país. Ou os 185 mortos na mesquita do Iêmen. Ou os 126 estudantes sequestrados e os 500 reféns na escola do Paquistão. Ou as garotas afegãs, como Malala, que levam tiro do Talibã por quererem estudar. Ou o jornalista saudita Raif Badawi condenado a mil chibatadas, 50 por semana, pelo uso da internet. Ou a criança treinada para executar prisioneiros diante das câmeras. Ou a menina-bomba de 10 anos que chocou o mundo esta semana. Ou os milhares de refugiados sírios que estão sendo abandonados por traficantes de gente no Mediterrâneo em navios-sucata.
Mesmo assim, algumas análises pseudocompreensivas tentam defender o indefensável: que as pessoas têm o direito de se sentir tão profundamente insultadas que só podem reagir assassinando alguém. Não alguém do Talibã ou do Boko Haram. Mas um escritor (como no caso Salman Rushdie), um jornalista ou cartunista. Ou um judeu.
Parece-me que esse esforço de compreensão mistura coisas bem diferentes. Às vezes, sem clareza para distinguir carrascos e vítimas — a velha distinção que Camus defendia. A selvageria que leva a agressões bárbaras e crueldade não se explica pela religião ou o fundamentalismo. Tem a ver é com ódio e ressentimento. O monge tibetano que se queima vivo para protestar também é fundamentalista e radical em sua fé. Porém, não é assassino. Como tem convicções profundas, não se sente ameaçado pelo comportamento alheio ou pela linguagem dos diferentes. Mas não deixa de ser radical em seu protesto. Até que ponto o fato de tratarmos militantes como vítimas frágeis, suscetíveis e facilmente melindráveis não contribui para comportamentos ressentidos e para narrativas de vitimização, teorias conspiratórias e interpretações alarmistas?
De um modo simples, destaquemos um ponto miúdo. A defesa da liberdade de expressão não deve ser só genérica, mas deveria incluir a liberdade de ser politicamente incorreto. Não desqualificar o outro porque usa termos que um grupo acha inaceitáveis. Não restringir o diálogo apenas a quem usa o mesmo jargão. Ainda outro dia, aqui neste jornal, a professora Bárbara Nascimento, moradora do Vidigal, onde nasceu, reclamava de quem acha que se tem de chamar favela de comunidade: “Favela significa algo. Um tipo de lugar. Tem história. É uma palavra bonita. Está nas canções.” Não é o caso de execrar quem a use.
Alimentar melindres e aguçar suscetibilidades não é um bom caminho para se viver em paz. Gera ressentimentos. Ou seja, faz sentir de novo as dores acumuladas ao longo da vida. Ou da História, por séculos a fio. Assim, de melindre em melindre, se ceva o ódio. Conferir esse poder a palavras ou desenhos é um exagero. Responder a ele com bombas ou tiros de AK-47 é uma insanidade. Não há “mas, porém, todavia, contudo...” que justifique.