Diz um velho ditado que não se deve falar no diabo porque o diabo aparece. Discordo. O demônio da violência anda à solta nas avenidas reais e virtuais do país.
A violência policial que pretende reprimir a fúria de um tipo minoritário de manifestante é gasolina jogada na fogueira. O problema é grave demais para ser deixado ao duvidoso bom senso das autoridades de segurança. Existe uma opinião pública democrática que é majoritária e, por isso mesmo, tem que se fazer ouvir.
O que as manifestações de junho, que refluíram sob o peso da violência, defendiam era o interesse público. Diziam uma verdade incontestável: a política não serve ao bom governo, são os governos que servem à má politica como moeda de troca, promessa ou ameaça de concessão ou retirada de privilégios. Essa lógica diabólica rege todos os partidos. Transforma governos em caixa-forte, administrações em pasto de aliados, impede que se priorize o que é do interesse dos cidadãos.
Quando pacíficas, e assim deveriam ter continuado a ser, as manifestações são a expressão mais viva da democracia contemporânea, que nos desafia a decifrar seus códigos e a reinventá-la. “Decifra-me ou te devoro”, disseram as ruas em que a internet veio desaguar.
No sábado passado, em São Paulo, dois desastres ilustraram o imenso risco que a violência que assombra as manifestações faz pesar sobre a democracia. Uma menina escapou de morrer queimada em uma barreira de fogo que interrompia o tráfego como forma de protesto. Salta aos olhos que nenhum pretexto justifica incendiar, literalmente, as ruas.
A Polícia Militar, num ato que mistura covardia, boçalidade e incompetência, baleou e feriu gravemente um rapaz de 22 anos. Antes invadira um hotel em que manifestantes tinham se refugiado. São espetáculos de truculência que lembram os malfadados tempos da ditadura, inclusive na canhestra tentativa de justificar-se culpando a vítima.
O conflito cego entre pedras e balas só pode desandar numa espiral enlouquecida em que, a História nos mostra, ao fim e ao cabo triunfa o mais forte, o mais brutal, o mais implacável.
A violência não pode se tornar a linguagem do protesto. Difícil imaginar que esse chamado à paz possa vir de lideranças políticas. Em temporada de caça aos votos, cada um se regozija quando o adversário enfrenta dificuldades. O drama das ruas, o rastro de destruição que deixa, é manipulado como arma eleitoral, o que dá a medida exata da miopia das supostas “lideranças”. Há quem torça pela aceleração desta engrenagem em todo o país, com a aproximação da Copa. São sonâmbulos dançando na beira do abismo.
A violência, de onde quer que venha, tem que parar agora, antes que aconteça o irreparável. Com a palavra, a sociedade. Deter a radicalização dos protestos e a truculência da repressão, quebrando o círculo vicioso do olho por olho, dente por dente, deve ser prioridade na agenda da opinião democrática. Condenando, em defesa da paz, os incendiários, que são minoria, chamando às falas os governadores que são, em última instância, os responsáveis pelos desmandos de suas polícias, cobrando da Justiça que quem quer que infrinja a lei — manifestante ou autoridade — seja responsabilizado e punido.
Há 30 anos, vestida de verde e amarelo, fui numa cadeira de rodas, com a perna quebrada e o coração inteiro, a uma inesquecível festa democrática, o Comício das Diretas Já. No palanque estavam artistas e políticos em quem acreditávamos, lideranças respeitadas que ocupariam o governo quando nos livrássemos dos restolhos da ditadura militar.
A democracia reconquistada, ainda que imperfeita, permitiu que as liberdades se ampliassem, a moeda se estabilizasse, a pobreza e a desigualdade diminuíssem. Teriam diminuído ainda mais não fosse a corrupção, essa lepra que corrói a credibilidade das instituições, expropriando a população do capital simbólico que é a confiança nas lideranças políticas. Confiança que estimulou toda uma geração a enfrentar os riscos da luta contra a ditadura.
Trinta anos depois, a população volta às ruas reais e virtuais, sem lideranças. Amadurecida, a opinião democrática entra em cena, fala com voz própria. O que grita, neste ano de eleição para Presidência da República, governos estaduais e parlamentos, é muito mais que a sua decepção. É a exigência de honestidade e qualidade no trato do interesse público. Atos, não palavras. Resultados, não promessas. Valores, não espertezas. Participação, não apatia, Construção, não destruição. E, sobretudo, não à violência, já.
O Globo, 1/2/2014