Acho que quase todo mundo faz alguma coisa para que o ano novo seja propício. Há os que se vestem de branco e lançam oferendas ao mar, os que tomam banhos de descarrego e ainda os que adotam providências para mim sempre meio confusas — enfiar um nhoque na orelha, encher a cueca de sementes de romã, misturar uma nota de cem dólares na salada e comê-la, botar um prato de lentilhas embaixo do travesseiro, não compreendo bem, tento aprender, mas esqueço logo tudo. Entretanto, que eu saiba, são relativamente poucos os que, no início do ano, procuram o alto patrocínio de um santo. E um bom santo padroeiro é mais que meio caminho andado para o contentamento e a prosperidade. Seu esquecimento não diz bem de nossa prudência e revela deplorável desleixo para com as tradições nacionais.
Conseguir o amparo e a assistência de um bom santo não costuma ser difícil, mesmo se tratando dos mais solicitados e ocupados. Santo é santo e aí, quando o pecador arrependido chega a ele suplicando uma colher-de-chá, ele pode até fazer umas exigências preliminares, mas não nega a ajuda, seria contra a caridade cristã e o Espírito Santo está de olho nele. Em Itaparica, apenas os mais antigos lembram algumas poucas ocasiões em que um santo não aceitou determinado caso, mas, quando isto acontecia, ele passava a questão para um colega de santidade, com mais experiência na matéria. Dizem que finado Edésio Testa Grande, uma certa feita, tantas e tais desgraceiras confessou a São Lourenço, que o santo ficou vermelho de vergonha, se levantou e disse: “Seu Testa Grande, o senhor me compreenda uma coisa, eu vou lhe dar um cartão para o senhor procurar Santo Agostinho, que na juventude foi ladrão, mentiroso, escandaloso e femeeiro e, assim mesmo, nunca chegou aos pés do senhor e, se ele não resolver seu caso, ninguém mais resolve.” E se sabe que Santo Agostinho, depois de muito trabalho e vários embargos infringentes, conseguiu livrar Testa Grande do inferno, mas não de oitocentos anos de purgatório em regime fechado, o que foi considerado leve por quem conheceu esse dito Edésio Testa Grande.
Certamente cometerei injustiças e pecarei por omissão, mas me arrisco a citar, assim de cabeça, alguns dos santos mais requisitados e prestigiados lá do Recôncavo, como João, José, Pedro, Luzia, as Teresas, Jorge, Roque, Bárbara, Rita, Judas Tadeu, Benedito, Efigênia e tantos outros. Propositadamente, deixei de fora Antônio, pois acho que ele merece destaque especial em nossa História, até porque era português e participou diretamente em diversos episódios dela. Claro, não se vai negar a grandíssima importância de um Pedro, um João, uma Teresinha, um José ou uma Rita, todos eles muito festejados e cheios de afilhados e devotos, mas Antônio foi oficial das forças armadas portuguesas, onde uma vez, por não se esforçar devidamente no combate, foi rebaixado, acho que lhe revogaram a patente de capitão. E ainda tomou vários esbregues de seu xará Antônio Vieira, que nem por ser xará aliviava a borduna.
Ele se redimiu esplendidamente dessa falha momentânea e prestou assinalados serviços na guerra contra os invasores holandeses. Mas, mesmo assim, as descomposturas do Padre Vieira ainda repercutem no coração dele, de forma que, quando se oferece a ocasião, ele aparece para mostrar serviço contra os holandeses, como fez no dia em que Vavá Paparrão passou a noite sozinho na Ilha do Medo e surgiu uma porção de fantasmas de holandeses para ali assombrar. Paparrão era capoeirista afamado, mas a luta era desigual e foi então que ele gritou “valei-me, meu Santo Antônio!” e o santo na mesma hora despencou lá de cima, já baixando o sarrafo nos holandeses. Quem testemunhou diz que o chão da Ilha do Medo amanheceu coalhado de cadáveres de almas holandesas. Atualmente, Antônio acumula seu cargo permanente de protetor dos pobres com a prestação de serviços para encontrar coisas perdidas e, principalmente, para o fornecimento de maridos. Ainda está para nascer aquela que fica para titia depois de fazer boas novenas para Antônio, sem nunca esquecer a missa dele no dia 13 de junho. Nos raríssimos casos em que o pedido não é atendido, as pretendentes pegam suas imagens do santo e as põem de cabeça para baixo no nicho até que apareça um marido, não falha nunca.
Mas, como já disse acima, muitos outros santos prestam diligente atendimento a seus devotos e os que cito estão longe de ser todos. Luzia, por exemplo, até hoje tem a fonte dela em Salvador, para quem quiser lavar os olhos e ficar logo enxergando melhor que um gavião. Jorge e Cristóvão, que andaram abalados com a notícia de que a Igreja duvidava de sua existência, receberam manifestações de solidariedade de todos os cantos e continuam firmes, o primeiro matando o dragão da maldade e ajudando os desempregados, e o segundo dando apoio aos viajantes. E, consultando um santoral de confiança, o distinto leitor ou a encantadora leitora não terá dificuldade em encontrar um ou mais santos dispostos a ajudar, a partir deste ano novo. Podem ter certeza de que, por trás de cada trajetória de sucesso, estão um ou mais santos de grande valia e muita gente esconde o jogo, não diz a ninguém qual é seu santo. Descobriu-se recentemente que até Zecamunista também tem santo protetor. Confrontado com a surpreendente revelação, ele não a desmentiu, como se esperava. Tem santo padroeiro, sim, só estranha isso quem não conhece o materialista baiano. É o padroeiro dos ateus, um irlandês chamado Oteram, de que pouca gente ouviu falar, porque seus devotos costumam ser muito discretos e só o mencionam quando a necessidade aperta.
— Vocês acham que os ateus iam ficar sem a cobertura de um santo? — disse Zeca. — Ateu também é filho de Deus.
O Globo, 5/1/2014