Não há inédito como o de Mandela, no preito em que o mundo acorreu ao seu funeral. Até onde ele vai, além da sua biografia — e aqui começa uma interrogação —, na força emergente em que acordou um inconsciente social do nosso tempo? A peregrinação às exéquias uniu amigos e inimigos, num portento a ligar todas as lideranças políticas destes dias. E é, sem dúvida, ao perdão aos seus carcereiros, por 27 anos, que emprestou Mandela um gesto-fundador na nossa contemporaneidade.
A resposta não é só universal, trazendo a China ao seu seio. Distingue-se de outro féretro desmesurado, como o de João Paulo II. São diferentes os profetismos no testemunho da sua abrangência. Não é o encontro uma confraternização pregressa, mas exprime um inconformismo difuso com o mundo à sua volta. Encadeia-se, em nosso inconsciente coletivo, com o protesto que foi às ruas à busca de uma causa, mas irredutível, no clamor pela alternativa.
Assistimos a um congraçamento a que a eventualidade de Mandela serve de gatilho, mas o excede. E o irrevogável não reside apenas na virada de página das segregações sociais, de que o apartheid foi o estigma contemporâneo. A busca pelo humanismo, numa primeira resposta instintiva à reunião desses dias, começa a dizer da busca das alternativas, diante do que exprimem as praças como o cansaço de um progressismo, buscado na competição, e não na partilha de seu êxito.
A descarga simbólica do enterro de Mandela liga-se a esse “povo na praça”, na busca de um futuro baseado num descarte do atual. Começa a militância por um consenso, antes mesmo do seu reconhecimento. Não se trata de homenagem só a um passado, mas, a partir do ensejo de Mandela, das surpresas, até, da monumentalidade do encontro. Não se está comemorando a épica de lances da liberação da humanidade, como o de Gandhi, nem, tão só, a força da concórdia, que Mandela multiplicou, agora, em Johannesburgo. O novo vai à visão de um outro futuro, descartado ao cativeiro das maximizações do progresso e sua fatalidade. A responder à sua possível diferença, o protagonismo único desses dias mal começa uma “tomada de consciência”, a se manterem as surpresas do enterro. O que se impõe, à busca de outro futuro, sem cartas de prego, é merecer o inesperado do agora.
O Globo, 16/12/2013