A desfeita da Primavera Árabe vai do imprevisível ao inaudito. Mais que a ruína democrática, deparamos a demolição da governabilidade, senão do próprio Estado. Aí está o colapso da gestão Líbia, com o sequestro do Presidente, num jogo de negociações de clãs contra clãs. A estabilidade social desaparece no país pós-Kadafi e se dissolve em tribos, num verdadeiro nomadismo político, em todo o sul do país.
O golpe no Egito, por sua vez, não teve apenas como consequência o abate do governo constitucionalmente eleito, com a vitória de Mursi, em 2011. A repressão armada levou, agora, a uma verdadeira guerra civil, com o inconformismo dos partidários do Presidente e o assassinato diário de seus defensores. A justificativa é a ameaça do fundamentalismo, com a instalação no poder da Fraternidade Muçulmana. Essa opção de futuro não poderia levar à violência do presente. E aí está, após um primeiro apoio, a redução de metade do dinheiro americano, no horizonte de sua retirada completa, diante da permanência indefinida do governo militar.
Manteve-se, por outro lado, na Síria, o governo Assad, depois de todos os primeiros apoios aos rebeldes, pelos Estados Unidos, e, de saída, pelo Ocidente europeu. Reforçou-se, cada vez mais, nestas últimas semanas, a convicção de que os rebeldes não só ampliam os seus dissensos, mas entremostram a ascensão do grupo Nur al-Din, constituído de grupos islamitas radicais, a se associar ostensivamente ao terrorismo da Al-Qaeda. E, inclusive, o trunfo estratégico dessa facção são os “homens-bomba”, a ameaçar toda a região, sem volta. A execração de Assad pelo uso de armas químicas contrabalanceou-se com a evidência de que esse recurso letal veio de ambas as partes, no esclarecimento contundente das próprias Nações Unidas. Paradoxalmente, o governo de Damasco ganha uma sobrevida, no quadro geral de risco do avanço da jihad, a se sobrepor ao clamor clássico de apoio do Ocidente às derrubadas das tiranias, e do desmonte dos direitos civis.
O aprofundamento do impasse na área parece, entretanto, modificar-se na polarização dos Estados Unidos, frente ao Oriente Médio, na surpreendente iniciativa do recém-eleito primeiro ministro Rouhani, do Irã, em abrir contato com Washington, interrompido desde 68. Não obstante a admoestação que teve o governante iraniano, pelo seu líder supremo, aí está o lance-fundador do degelo, em uma aposta inédita na nova opinião pública do país, frente à rigidez da Revolução de Khomeini. Vindo de par com a abertura de concessões sobre a exploração dos minerais necessários à produção da bomba atômica, Rouhani confronta as irredutibilidades de Israel, em um novo possível alinhamento dos blocos Oriente-Ocidente, e, sobretudo, a atualização russa, após os anacronismos da Guerra Fria. E vai ao encontro de Obama, num momento estratégico único, para se contrapor ao preconceito anti-islâmico do pertinaz fundamentalismo republicano, em meio ao próximo pleito eleitoral americano.
Jornal do Commercio (RJ), 18/10/2013