Em termos de pensamento religioso, o papa Bergoglio poderia ser considerado (se é que essas classificações têm algum valor) um “conservador flexível”, um defensor do que já se chamou de “ortodoxia positiva”: fidelidade à doutrina da Igreja temperada por uma avassaladora humanidade.
Por exemplo, ele se opõe firmemente ao aborto (o que a Igreja sempre fará), mas insiste em que há coisas que têm de mudar, na sociedade, para que o aborto não seja mais necessário. Uma delas: oferecer tratamento condigno para a mãe durante a gestação, bem como atenção psicológica depois que o bebê vem ao mundo. O período pós-parto, como se sabe, é de stress para a mãe e a criança, e em muitos países não há a folga pós-parto em dose suficiente, ou não há proteção de qualquer espécie.
Se a sociedade fizesse assim, Bergoglio acredita que muitas mães desistiriam do aborto. Ele conversou com muitas mulheres que tinham passado por isso, e disse que todas lamentavam o que ocorrera, e tinham noção de que era uma espécie de assassinato.
Ele é contrário ao homossexualismo. Mas acha que é um pecado tratar as pessoas diferentemente por causa de sua opção sexual. Ele acha que a Igreja, nesse terreno, é muito exclusivista; que cada um de nós tem os seus próprios pecados, e que os homossexuais são pessoas como as outras.
A paixão pelos pobres quase que define a sua vida; é, nele, uma espécie de “trademark”. Filho de trabalhadores, ele sabe o que é o mundo do trabalho, e acha que os governos deviam investir numa política de trabalho, e não de doação.
Também se preocupa com uma sociedade que exagera nas gratificações, muito mais do que na disciplina. Muitos pais não ensinam aos filhos o valor do trabalho árduo, criando assim adultos que podem não saber como contribuir para a sociedade ou levar vidas significativas. São lições que ele aprendeu dos seus pais, por quem tem veneração.
Como o Cristo, ele não suporta a hipocrisia. Acusou padres de hipocrisia por não quererem batizar filhos de mães solteiras, e pronunciou uma frase marcante: existem mães, e não mães solteiras.
O que ele mais ressente nos padres: a tendência de se tornarem mais administradores do que padres.
Nesse ponto, pode-se entender que a missão é difícil. Imagine cuidar de uma paróquia, com pouco dinheiro, uma dose razoável de fofocas, e a solidão que às vezes é o preço da vida sacerdotal (não vale mais uma vez botar a culpa no celibato). Mas apesar de tudo, o papa Francisco não se conforma com a paróquia burocrática, diz que o padre tem de sair do casulo, ir em busca das pessoas, estabelecer laços de caráter pessoal.
É o que, aparentemente, têm feito as comunidades evangélicas, e esta é uma das razões da sua rápida expansão. Também o católico precisa recuperar o sentido da comunidade que é a própria origem da vida cristã. É o que Bergoglio tem feito toda a vida, como padre, como bispo, como papa.
Para ele, isso é tanto mais importante quanto mais se sobe na escada da vida — ou da carreira eclesiástica. Ele gosta de usar o exemplo do cardeal Casarolli, que foi um importante secretário de Estado do Vaticano, mas manteve sua prática de visitar jovens nas prisões.
Um ótimo resumo do pensamento de Bergoglio é a homilia pronunciada na capela da Casa Santa Marta, no Vaticano, logo depois da sua eleição. Ele falava para funcionários da Casa, que agora acompanham o seu dia a dia, e referiu-se às leituras do dia, que contavam as dificuldades da primeira comunidade cristã, em seus esforços para crescer e multiplicar o número de discípulos. “Isso é uma coisa boa, disse o papa, mas que pode levar a pactos para ter ainda mais sócios nessa empreitada. O caminho que Jesus quer para a sua igreja é outro: o caminho das dificuldades, da cruz, o caminho das perseguições. E isso nos faz pensar: o que é essa igreja? Pois não parece iniciativa humana”. E ele toca num ponto crucial: “Os discípulos não fazem a Igreja: eles são enviados, enviados de Jesus. E Cristo é o enviado do Pai”.
“O Pai amou. E começou essa história de amor, que se prolonga no tempo e que ainda não acabou. Nós, homens e mulheres da Igreja, estamos no meio de uma história de amor. Cada um de nós é um elo nessa corrente de amor. E se não entendermos isso, não entendemos nada do que seja a Igreja”.
O Globo, 27/7/2013