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Uma visita a Aparecida

 

Houve quem achasse que o Papa Francisco foi pouco incisivo naquele primeiro discurso do Palácio Guanabara (ou seria no “bunker” do Guanabara?). Não penso assim. Ele se comportou como pessoa educada, que bate à porta e pede licença para entrar. E, sendo argentino, não ia mesmo deitar falação sobre política brasileira.

Quem queria conhecer o verdadeiro Bergoglio, para além dessa “persona” supersimpática que está na mídia, teve uma oportunidade para isso assistindo à missa de ontem em Aparecida, transmitida pela televisão. Antes de começar a missa, o Papa se deteve ante a imagem da padroeira do Brasil, e rezou como se estivesse no seu oratório particular — longamente, sem sorriso, eu diria comovidamente. Depois, consagrou o seu papado à Senhora de Aparecida, que também é a Virgem de Guadalupe, protetora da América Latina.

Essa devoção mariana dá o que pensar. Ela aproxima Francisco de João Paulo II, que tinha suas raízes plantadas na Virgem Negra de Czestochowa. É um modo de ser religioso que fala mais ao coração do que ao raciocínio. E é um atalho que leva em marcha batida na direção do mistério.

A figura do Cristo sempre se pode racionalizar. Pode-se até excluí-lo do terreno do sagrado. Foi o que fez, por exemplo, Ernest Renan, famosíssimo autor francês do século XIX, com sua “Vie de Jésus”. Jesus aparece, ali, como pessoa perfeitíssima, um modelo de idealista, que só queria o bem dos outros — mas de divino não tinha nada. Mesmo hoje, o Cristo pode ser um padrão do “politicamente correto” — e só.

Mas a Virgem Maria, ou você a ignora totalmente, ou é obrigado a entrar no terreno do mistério.
Uma visita a Aparecida

Ela mesma cultiva o mistério, em episódios como o de Lourdes. Nesta e em outras aparições, ela não acrescenta uma linha ao nosso saber teológico. A não ser por um pequeno detalhe, que é mais uma confirmação do que uma revelação. Na história de Lourdes, que se passa em 1858, e resultou num lugar de peregrinação só inferior, em frequência, ao Vaticano, ela aparece a uma menina de 14 anos, Bernadette, pobre entre os mais pobres, e durante uma série de 15 aparições, limita-se a pedir orações sem revelar a sua identidade. Finalmente, cedendo à persistência camponesa da vidente, solta uma simples frase, no dialeto de Lourdes: “Eu sou a Imaculada Conceição”. Aí, sim, os teólogos foram à loucura, porque esta era uma noção profundíssima que o Papa Pio IX tinha transformado em dogma poucos anos antes.

Mas as discussões só mobilizavam os teólogos: para Bernadette, bastava saber que a misteriosa visitante era a Virgem Maria, e que, através da água de Lourdes, começavam a acontecer coisas surpreendentes.

Todas essas histórias foram sendo sufocadas pela civilização racionalista moderna, até que, de uns tempos para cá, os ventos começaram a mudar. Um teólogo famoso, Karl Rahner, escreveu lá pelos anos 60: “O cristão do século XXI será um místico ou não será nada”.

Hoje, buscam-se novos tipos de espiritualidade — como se vê na reportagem de ontem de Chico Otavio. Não é para transformar a religião no “ópio do povo” — e não há ninguém mais atento ao pobre do que o Papa Francisco. Mas as pessoas querem, de novo, a experiência do sagrado, para além de uma religião demasiado racional que acaba transformando o Evangelho num código de boas intenções. O mapa desse novo cenário também pode ser encontrado no novo livro de Maria Clara Bingemer, “O mistério e o mundo”.

Quando Francisco, ou João Paulo II, patrocinam a devoção a Maria, não estão propondo um retorno a antigas carolices. Estão, simplesmente, apontando para o coração do mistério.

A história de Maria é a história da Encarnação. Uma história que começa dentro do judaísmo e que subentende a mais descabelada das hipóteses: a de um ser simultaneamente humano e divino, filho de Deus e filho de mulher. E filho de virgem. Tudo tão extraordinário que, até o século IV (e mesmo além disso), discutiu-se furiosamente em torno da natureza de Cristo.

Os teólogos continuam discutindo. Os santos se deixam envolver pelo mistério, e acabam entendendo “por dentro”. Por isso, o Cristo dá graças ao Pai por ter revelado aos humildes o que escondeu dos eruditos. Ele sabia das coisas.

O Globo, 25/7/2013