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A voz do povo

 

Logo que as manifestações de rua começaram, Zecamunista, entremeando a fala com alguns suspiros nostálgicos, surpreendeu todos os presentes no Bar de Espanha, ao revelar que não iria a Salvador, tomar parte nos protestos. A cruel verdade era que o vigor combativo de sua juventude já o abandonava e longe, muito longe, iam os dias gloriosos em que, por exemplo, foi preso por ter planejado, comandado e quase concluído com êxito um plano de ação gastrointestinal, para neutralizar a Polícia Militar do Estado da Bahia e assim evitar a repressão de uma das muitas passeatas subversivas em que saía, desde o tempo de Getúlio. Na madrugada antes da passeata, à frente da Guarda Proletária do Alto das Pombas, esteve prestes a despejar, nas caixas d’água dos quartéis, um extrato concentradíssimo de erva-cagona que o finado Vavá Paparrão conseguiu nos matos da Ilha dos Porcos, capaz de levar a vítima a comparecer ao trono de cinco em cinco minutos, não se dedicando a mais nada durante pelo menos um dia ou dois.

— Mas fui traído, me dedaram, mataram a revolução brasileira no nascedouro — lembrou ele, com certo amargor. — E quase me enquadram como terrorista e mais uma porção de coisas e, se meu advogado não fosse o grande dr. Mococa, eu podia ter pegado uma cana feia. Mas o dr. Mococa defendeu a tese de que erva-cagona era arma de efeito moral e, se a PM podia usar armas de efeito moral, o cidadão também podia. Dr. Mococa é muito bom e o juiz era linha auxiliar do partidão, de maneira que me soltaram, só me enfiaram um funil na boca e entornaram aqui dentro meia caneca de óleo de rícino, antes de eu sair da cadeia. Naquela época isso era besteira e em alguns o funil nem era na boca, meu santo é forte. No tempo do petróleo é nosso, foi muito pior, uma vez me deram um banho de mergulho em petróleo cru que eu levei semanas para tirar todo, o pessoal da repressão engrossava numa boa.

Agora não. Chegara a pensar em fazer um esforço e aparecer nem que fosse para constar, mas podia até atrapalhar, já não era homem de linha de frente, o bom agitador deve reconhecer suas limitações e não comprometer o êxito da luta revolucionária. Mas isso não significava que ele estava abdicando de suas convicções, nada mais distante da realidade. Já se encontrava na ilha, por ele constituído e em treinamento por ele ministrado, o grupo das voluntárias avançadas do Memededê, o Movimento das Mulheres-Damas Democráticas, composto pela fina flor do Lupanar do Moura, tradicional estabelecimento do ramo, em Nazaré das Farinhas, além de diversas amadoras politizadas e ansiosas por participar da vida nacional, projeto de alto impacto. Além disso, diante da notícia do plebiscito, tinha decidido colaborar no esclarecimento dos eleitores itaparicanos. Se houver plebiscito, não podemos fazer feio, temos que mostrar preparo. Já ia até começar umas pesquisas preliminares e, para não dizerem que escolhia a seu bel-prazer, tinha preferido sortear um cidadão para entrevistar.

Sorteio é sorteio e quiseram os fados que o sorteado fosse Tucão de Evilásia, neto de finado Bidu da Misericórdia. Versado em várias artes, da pintura de paredes e da limpeza de pescado à colheita de mangas e à capinação, Tucão é pessoa por todos estimada na coletividade, pelo seu trato gentil, conduta incriticável e disposição prestimosa. Mas, ponderaram diversos, nunca se destacou muito pela cultura e há quem garanta que a professora Sazinha pediu aposentadoria depois de ter ficado repuxada dos nervos, por ter tido Tucão como aluno durante uns dez anos, sem que ele saísse do curso primário. Não haveria como Zecamunista escolher outro, um Ary de Maninha ou um Jacob Branco, campeões da oratória e do conhecimento? Zeca negou-se a fazer a troca, o sorteio estava sacramentado e era à prova de mutreta, o governo não se metia e nada de medalhões e elitismo. O objetivo era traçar o perfil do eleitor e ninguém podia negar que Tucão era um cidadão normal, como qualquer outro.

Falai no Mendes, à porta o tendes, já diziam os antigos. Eis que, nesse mesmo instante, assoma à entrada a figura afável de Tucão. Ainda bem que conseguira chegar antes de Manolo ficar com sono às seis horas da tarde e botar todo mundo para fora do bar. Estivera entretido com a televisão, vendo os protestos. E se detivera um pouquinho mais, para prestar atenção na explicação do plesbicítio.

— Plebiscito — corrigiu Zeca.

— Plebliscito — disse Tucão.

— Ple-bis-ci-to.

— Plesbicito.

— Plebiscito!

— É minha língua que não dá, mas eu sei como é — explicou Tucão. — Eu sempre tive esse problema da língua preguiçosa. Professora Sazinha…

— Tudo bem, mas pelo menos você já sabe o que é.

— Claro que eu sei, a televisão explicou. O pessoal saiu nos protestos, aquele sufoco medonho, bomba, porrada, todo mundo pedindo providências para os problemas, e aí chega a presidenta e discursa que ficou sabendo desses problemas que antes ela não tinha resolvido porque desconhecia e agora passou a conhecer e, na qualidade de presidenta disso tudo aqui, apresentava logo tudo completamente resolvido, atendendo a todos os pedidos com grande satisfação e rapidez, o qual atendimento era esse que hoje está tão falado.

— O plebiscito — disse Zeca.

— Isso mesmo, o plesbicíntio — disse Tucão, caprichando na pronúncia. — Ninguém pode dizer que não resolveu tudo, é ou não é?

O Globo, 7/7/2013