Recebemos de um leitor desta coluna que atua na imprensa carioca a seguinte pergunta:
“Como o novo Acordo resolveu a grafia do nome da República da Ásia meridional, integrante da Comunidade britânica: Singapura ou Cingapura?”
A indagação já foi há algum tempo objeto de nossa atenção nesta coluna, mas o assunto é muito oportuno porque nos leva a trazer aos leitores de hoje informações úteis para a correta compreensão dos problemas que envolvem a resposta a grafias de nomes de um léxico especial da terminologia técnica e científica. Denominações como Singapura (ou Cingapura) não têm o mesmo tratamento lexicológico e lexicográfico de outras denominações do tipo ‘trem’ e ‘ônibus’, como usamos no Brasil, e ‘comboio’ e ‘autocarro’, como empregam, respectivamente, os portugueses. Estes últimos pares de nomes pertencem à seção do léxico constituído pelas palavras usuais, tecnicamente chamadas palavras lexemáticas, dotadas de uma função léxica propriamente dita, de estruturação primária da experiência por meio das ‘palavras’.
Como esta coluna não se destina a técnicos, pomos aqui um exemplo dessa configuração estrutural das palavras lexemáticas, com o simples propósito de ser mais bem entendido. Trem e ônibus (poderia ser também, comboio e autocarro) são unidades do campo léxico 'meios de transporte por veículos', que inclui, entre os terrestres, automóvel, carro, bicicleta, motocicleta, etc., que se opõem semanticamente entre si por traços distintivos (por impulsão motora ou não, para uso individual ou coletivo, com ou sem ar-condicionado, para transporte de pessoas ou animais, etc.), isto sem contar os meios de transporte por veículos aéreos (avião, balão, foguete, etc.), por veículos marítimos (navio, barco, prancha, etc.), e por veículos anfíbios (aerobarco, tanque anfíbio, etc.).
De nada disto, ou de quase nada disto participam os nomes próprios de pessoas, os nomes próprios geográficos, os termos das nomenclaturas técnicas e científicas, embora gozem alguns desses do privilégio de outros fenômenos, 'léxicos', como, por exemplo, a 'derivação' (Brasil-brasileiro-abrasileirar-abrasileiramento, etc.). Por esta última razão, é que, em geral, os dicionários que não registram nomes próprios registram seus derivados, como 'brasileiro'.
O assunto posto hoje em discussão é muito complexo e demanda não só a intervenção suplementar dos filólogos e linguistas, mas também, e principalmente, dos geógrafos e historiadores, bem como de instituições e órgãos competentes, como o Itamaraty, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas).
Também por estas razões os signatários do novo Acordo, pretendendo que o movimento de unificação e simplificação da ortografia chegasse às palavras e expressões usadas nas ciências técnicas, propuseram o Artigo 2º do texto oficial, assinado em 1991, assim redigido.: "Artigo 2º.:Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração, até 1 de janeiro de 1993 [prazo depois retirado pelo Protocolo modificado de 17 de julho de 1998], de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas." Durante muito tempo, os inimigos do Acordo, alterando o propósito dele claramente enunciado, exigiam que os Estados elaborassem um vocabulário ortográfico comum antes de as bases do Acordo entrarem em vigor, enquanto outros inimigos, na mesma linha de pensamento, criticavam a ABL, por ter implementado o novo sitema na eleboração da 5ª edição do seu Vocabulário Ortográfico antes do tal pretendido vocabulário ortográfico comum. Hoje os inimigos recalcitrantes buscam em vão novos argumentos, enquanto o Acordo vai conquistando a adesão dos órgãos de comunicação em todo o espaço geográfico da lusofonia.
Não é, pois, sem razão, que estudiosos nacionais e estrangeiros se tenham debruçado sobre a matéria, já que o problema é, como sabemos, comum às outras línguas de civilização. No que toca à lingua portuguesa, quanto a nomes próprios geográficos, como saber que opção tomar em relação à escolha entre Singapura e Cingapura, tem prevalecido, de modo geral, uma antiga proposta do notável foneticista lusitano Gonçalves Viana, proposta registrada na Ortografia Nacional (Lisboa,1904), da qual falaremos na próxima semana.