Dentro de toda esta realidade que traz os BRICs para o cenário da nova globalização, avançam, também, os primeiros contrapontos entre esses parceiros emergentes. No empenho de um novo vis-à-vis internacional, a China, em missões sucessivas ao Brasil, tem aprofundado o diálogo sobre assuntos, até há pouco, deliberadamente marginalizados, como, sobretudo, o problema da religião no subcontinente. Sustenta a cultura chinesa que o conceito de religião fugia a uma efetiva vigência na formação da sua identidade, esquiva à ideia de qualquer transcendência, diante das estritas éticas comportamentais, expressas pela sabedoria do Confucionismo ou de Lao-Tsé.
Os primeiros contatos com o cristianismo, através da sensibilidade do jesuíta Matteo Ricci, no século XVI, entremostraram o equívoco de todo o possível missionarismo numa pregação religiosa. Ricci conquistou a admiração do Imperador Wan-Li e viveu várias décadas no país como o sábio Li Mateou, e ao debate sobre o teor filosófico e ético da ciência muito mais do que o da fé, deixada à vivência ocidental. Praticamente imune às religiões ocidentais até o século XIX, viveu a China o repúdio ao cristianismo, como bagagem do imperialismo franco-britânico, na sequência da Guerra do Ópio. O que fez Ricci no século XVI tentou o Padre Lowe, no começo do século XX, na busca cultural sem a pregação. Mas o experimento se viu sufocado pelo nacionalismo de direita de Sun Yat-sen e Chiang Kai-sheck, em nova associação da fé à dominação Ocidental.
O maoísmo, de vez, levaria ao marco-zero a viabilidade de convivência religiosa, com a nova e definitiva integração política do subcontinente. Meio século após, a religião é tolerada dentro de limites, precisos e expressos, em cinco grandes denominações: a do confucionismo, a do taoísmo, a do judaísmo, a do maometismo e, hoje, dentro do cristianismo, numa aculturação regrada, a do catolicismo. Fomenta a China de hoje a criação dos patriotas católicos, ou seja, de grupos de crentes que manifestam a sua ortodoxia de crença, mas não a subordinação ao Papa e ao Vaticano. São nove milhões de adeptos desta crença, num contraste com os seis milhões de católicos ortodoxos, mantidos na clandestinidade e numa absoluta falta de reconhecimento, inclusive com limitações de pleno acesso à cidadania política.
O que está em causa, essencialmente, é a compreensão, pelo governo chinês, da efetiva submissão externa dos católicos, tal como se o papado fosse a expressão de soberania e interferência externa num tipo de conduta de estrito foro íntimo e de deveres individuais. E é, hoje, a partir do próprio Papa Bento XVI, que se abrem as iniciativas, a confrontar o subcontinente, no que seja, de fato, a visão da modernidade religiosa e o sentido da continuidade de uma igreja universal. Não questiona, por exemplo, o Vaticano, a legitimidade da ordenação dos padres e bispos feita em obediência ao rito católico, só não admitindo o exercício das funções, tanto não reconhecem o liame fundamental com a Igreja. A abertura vaticana foi a muito mais que ao meio do caminho, e a China do século XXI está em tempo de se livrar, talvez, do último dos seus estigmas da pré-modernidade.