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O totalitarismo científico

 

“Totalitarismo”, que já teve sua grande voga, é uma palavra hoje pouco usada. Levado pela experiência, fico com receio de que o leitor mais jovem não saiba a que me estou referindo e então dou uma rápida explicação, só para o gasto. Há totalitarismo quando uma organização, geralmente um Estado (“Estado”, no caso, são todos os países politicamente organizados), mas pode ser qualquer outra, como um partido político, pretende assumir controle sobre toda a vida do cidadão, não somente quanto a ideias e sentimentos, mas quanto a comportamento e observação de valores. O totalitarismo já mostrou sua carantonha algumas vezes na História e talvez se tenha pensado que, com a derrocada do nazifascismo e das ditaduras socialistas, ele tenha ido embora.

Mas não foi e está botando as manguinhas de fora cada vez mais. Cada vez mais se tenta regular a conduta do cidadão, mesmo em áreas imemorialmente reservadas a arbítrio e atos da sua exclusiva alçada. E é “científico” porque costuma apoiar-se nas fugazes verdades supostamente inatacáveis da ciência, que, como sabemos, mudam praticamente todo dia. Subitamente, há um afã por proteger-nos de nós mesmos e, muito pior, impor-nos “verdades” científicas que na realidade estão no terreno dos valores e permitem a convicção em outras “verdades”, por motivos culturais, psíquicos, religiosos ou o que lá seja. Isso se deu, por exemplo, com a lei da palmada, que, aliás, parece que não colou, considerada descabida por muitos pais.

O fumo é um bom caso. Não estou a soldo da execrada indústria do tabaco, sou a favor de que não se fume (contanto que se faça esta escolha livremente), mas ninguém que tenha um pensamento consequente pode aceitar o que já se começa a fazer (ainda mais que está na moda nos Estados Unidos e o nosso ideal é ser americano). É possível agora – e parece que alguns poucos já fizeram isso – que um condomínio residencial, por decisão de maioria simples, resolva abolir o fumo em suas dependências e aplicar pesadas multas aos moradores que fumarem – atenção -, mesmo trancados em seus próprios apartamentos ou casas. Fala-se na instalação, que já ocorre nos Estados Unidos, de detectores de fumaça nos apartamentos. Não sei o que acontecerá com quem queime incenso em casa, mas provavelmente acionará uma sirene e convocará uma brigada do Comando de Caça ao Tabagista. Cada casa vai virar banheiro de avião e qualquer fumacinha que seu dono fizer será denunciada e implacavelmente castigada.

Que é isso? Aonde chegamos? O infeliz compra uma casa, faz dela seu lar supostamente inviolável e não tem liberdade em seu próprio território, sem prejudicar ninguém, a não ser ele mesmo? O condômino que for voto vencido vai ter de parar de fumar, pitar ao relento ou vender o apartamento e se mudar? Vive-se em cidades poluídas como Rio e São Paulo, mas o cigarro do vizinho, trancado em seu escritório, é o que prejudica o condomínio? E se fumaça e cheiro começarem a ultrapassar os limites do cigarro e do charuto? Deverão em breve manifestar-se os que se sentem incomodados com cheiro de carne assada – e assim poderão ser banidos os churrascos na cobertura. Talvez várias plantas também venham a ser proscritas, pois há muitos alérgicos a pólen que padecem com flores. Caprichando, dá para proibir tudo.

Já previ aqui, e continuo acreditando que vai acontecer, que, no futuro, para proteger nossa saúde, seremos obrigados a seguir restrições alimentares baixadas pelo Ministério da Saúde e, em certos casos, o supermercado só nos poderá vender alimentos de uma lista carimbada por uma nutricionista oficial. Como essas coisas mudam a cada instante, todo mês sairia uma lista revista do que é cientificamente aconselhável comer e, portanto, devia ser obrigatório e, mais dia menos dia, pelo visto, será.

Se haverá detectores de fumaça, não sobra muita razão para não se instalarem câmeras de tevê, a fim de monitorar pelo menos certos casos, como na área da educação. Os pais estabeleceriam os horários em que ajudariam os filhos com os deveres de casa e aí um funcionário do Ministério da Educação acompanharia os acontecimentos em tempo real, para ver se o pai se interessa mesmo pela educação do filho, se segue a metodologia traçada pelo Ministério e se não faz observações politicamente incorretas, levando-se também em conta que linguagem chula está fora de cogitação. E, na hora em que os pais dessem um livro para os filhos lerem, a leitura só poderia ser realizada depois que os pais ouvissem do governo a contextualização do livro e como ele deverá ser corretamente entendido e explicado.

Talvez não seja simples atuar em outras áreas, mais delicadas, como a da conduta sexual do cidadão (sim, claro, e da cidadã, da cidadã também; eu esqueço que agora o certo é escrever assim). Sabe-se que, dentro de uma gama razoável de ação, muitas práticas sexuais pouco ortodoxas são aceitas, desde que mutuamente consentidas. Mas o problema está aí. Serão mesmo mutuamente consentidas, ou um dos cônjuges é na verdade violentado? Para ter certeza, só monitorando tudo com câmeras, o que poderá ser feito a pedido de qualquer um dos cônjuges, ou causado por uma denúncia feita junto ao Ministério Público. Aliás, deverá ser possível que a d. Marta, do sexto andar, suspeite da trilha sonora que, certas horas da noite, se esgueira da alcova de seus vizinhos do sétimo e recorra ao Disque Denúncia para que a escabrosa situação seja monitorada. Sei que muitos de vocês talvez pensem que deliro. Mas não deliro, já está acontecendo e a tecnologia facilita o controle sobre qualquer indivíduo. É daqui para pior e – nunca se sabe – dentro em breve estará em graves apuros quem der um punzinho na sala.

O Globo, 2/10/2011