Estou em Berlim, chegado de Viena, onde passei cinco dias praticamente sem falar em política, porque o evento a que compareci foi o 9.º Congresso Alemão de Lusitanistas, realizado pelo Instituto de Filologia Românica da Universidade de Viena e pela Associação Alemã de Lusitanistas. Minha participação principal foi uma sessão em que fizemos leituras bilíngues de textos meus, seguidas por uma animada conversa com uma plateia muito simpática.
Costumo lembrar que apenas escrevo e não entendo nada de literatura, mas não acreditam e aí eu me benzo e vou em frente de qualquer maneira. A ajuda divina apressadamente invocada deve ter funcionado, porque creio que não envergonhei a pátria. E, claro, fiz o que pude para passear outra vez em Viena, uma das mais encantadoras cidades do mundo, onde a todo instante a gente tem que parar, fascinada pela beleza, riqueza histórica e cultura emanadas até dos blocos de pedra dos edifícios e monumentos. A única coisa que faltou foi o mergulho no Danúbio azul que sempre me prometi, mas sei que nunca vou fazer, por recear voltar ao Brasil em forma de picolé. Grande, incomparável Viena, que não pode estar ausente de nenhuma excursão pela Europa e que todo mundo deveria poder visitar? a vida fica sempre mais enriquecida e a sensibilidade mais apurada..
Quanto a Berlim, onde já morei, é outra coisa. É uma de minhas cidades favoritas e a volta é sempre um festival de reminiscências insubstituível. Sofreu o impacto dos bombardeios que pouparam Viena e, posteriormente, o trauma da reunificação, que não deixa de persistir e levará algum tempo para ir-se embora de vez. Mas que cidadaço! Cosmopolita, bonita e também cheia de história e cultura, com alguns museus únicos no mundo, não para nunca e, ao contrário das outras cidades alemãs, projeta uma atmosfera boêmia e pouco convencional, onde todas as tribos convivem e se manifestam e as ruas mais movimentadas são uma festa. Pode ser até que eu esteja fazendo propaganda turística, mas a verdade é que, no Brasil, Berlim me parece subestimada, se comparada pelos que estiveram na Europa e não a visitaram com outras cidades grandes que não chegam nem perto de sua sofisticação e seu charme, talvez difícil de perceber ao primeiro olhar. E os alemães de fato não têm o temperamento de povos como o nosso, mas não é impossível que o visitante perdido numa rua qualquer, peça ajuda a um passante e este chegue a mudar sua trajetória, para acompanhar o desamparado a seu destino, se for numa rua próxima – já me aconteceu mais de uma vez.
E, ao contrário dos habitantes de outras cidades aparentemente mais antenadas com o mundo, o número de berlinenses que se interessa pelo que se passa em países como o Brasil é considerável, a começar pelos motoristas de táxi, que, claro, falam em futebol e vários são capazes de lembrar os principais jogadores das seleções brasileiras. Mas não falam somente em futebol, como aconteceu com um deles, no trajeto até meu hotel. Estava mesmo ocorrendo no Brasil uma terrível praga de moscas, como ele tinha ouvido no rádio? Os hospitais brasileiros estavam tomados por temíveis moscas tropicais assassinas?
Era o caso das varejeiras que infestaram o hospital Pedro Ernesto, no Rio. Eu, que já havia dado uma olhada nos jornais brasileiros pela internet, tranquilizei-o e passei-lhe as dimensões verdadeiras do caso. Ele me respondeu que já tinha suspeitado disso, principalmente depois do governo do presidente Lula, que havia mudado radicalmente o Brasil, livrando-o do atraso e das condições terríveis em que o nosso povo antes vivia, a começar pela saúde pública. Quase não tive coragem de contradizê-lo um pouco, explicando que, se ele visitasse hospitais públicos brasileiros, talvez não se recuperasse do choque, pois não era bem assim. Mas ele nem ouviu minha resposta. Descobri que estava num táxi do PT, ou pelo menos de um lulista fanático. Ou então os comerciais do governo estavam passando na televisão daqui. Pelo visto, a popularidade do homem havia chegado com força a Berlim. Despedimo-nos com ele exclamando “Lula!” e apontando o polegar para cima com um sorriso.
Mais tarde, verifiquei que, entre vários amigos daqui, o lulismo também se espalhou e, mais ou menos do mesmo jeito que em relação ao motorista de táxi, eles não gostam de ouvir contestações e Lula é ainda mais revestido de teflon que no Brasil, nada contra ele cola. Como explicar que nossos indicadores de desenvolvimento humano estão entre os mais baixos do mundo? Como explicar que as nossas estatísticas são geralmente enganosas e que, em matéria de saúde pública, também estamos em vergonhosa rabeira? Como explicar o uso de aprovação automática nas escolas e o fato de que um número espantoso de brasileiros que frequentaram uma escola não aprendeu nem a ler, nem a escrever, nem a fazer uma conta elementar? Como explicar que pagamos os mais altos impostos do mundo para ter saúde pública e somos obrigados a gastar ainda mais com planos particulares caríssimos, que, por sinal, já estão ficando cada vez mais parecidos com a chamada saúde pública, e que nenhuma autoridade é maluca o suficiente para recorrer à rede hospitalar pública?
Não era nada disso, eles liam os noticiários e sabiam da verdade. Se a Alemanha tivesse um primeiro-ministro como Lula, seria uma felicidade. Não disse, mas pensei comigo mesmo que tinha um ideia melhor. Por que não importavam Lula para governá-los? Certamente seria conhecido como Lula der Grosse, que não é o que você está pensando, mas “Lula, o Grande”. Essa exportação de nosso Grosse seria muito benéfica. Para o Brasil, não para a Alemanha, pensei, mas de novo não disse.
O Globo, 25/9/2011