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Como seria bom

 

Há muitos e muitos anos, ir à Suécia era o sonho de jovens brasileiros que sobre ela só sabiam que revistas pornográficas lá eram produzidas e vendidas livremente e que as suecas tiravam a roupa assim que avistavam negros e morenos de modo geral, caso da grande maioria de nós. Até já estive na Suécia, ainda mais ou menos nessa época, e receio ter de recordar que meu bronzeado baiano não fez nenhum sucesso. Mas a imagem antiga, diluída em fantasias juvenis, permanecia na memória. De uns tempos para cá, contudo, isso vem sendo substituído por um certo calafrio, quando me bato com uma notícia vinda de lá.


É que muitas ideias propostas para adoção no Brasil são precedidas pela conversa de que na Suécia, país civilizadíssimo, onde até os cachorros têm diplomas escolares e a felicidade é obrigatória, também se faz assim ou assado. A ideia de que o que é bom para a Suécia pode não ser bom para o Brasil não costuma entrar em cogitação. E, como cada vez mais aparece gente com poder e disposição de deitar regra sobre tudo o que fazemos e nos tornar felizes, protegidos e ajustados, mesmo que não queiramos, as notícias da Suécia deram para assustar.


Agora, leio aqui que por lá há um plano para extinguir o dinheiro, ou seja, notas e moedas. A razão para a iniciativa – diz aqui, não tenho nada com isso – são os assaltos. Sem moeda, os assaltantes suecos não teriam o que levar. Daí para a extinção total do chamado dinheiro sonante, esse trambolho anti-higiênico e incômodo, deverá ser um passo rápido, é só querer. Em vez de salário, o camarada receberia créditos em seu cartão e sairia fazendo todas as suas despesas com ele, pois imagino que, num sistema perfeito, cada um, não somente o comércio, tenha sua maquininha de debitar cartões, que poderá, como tudo mais, vir com o celular. O qual, aliás, já é usado até no Brasil mesmo, como instrumento para pagar contas.


Perfeito, claro. Alguém deve estar pensando em fazer a mesma coisa aqui, onde os assaltos, presumo eu, são um problema um pouco maior que na Suécia. Seria uma beleza, notadamente para os órgãos cobradores de impostos, porque nem uma gorjeta entraria no bolso de um flanelinha, sem que a autoridade tivesse conhecimento. O dinheirinho do motel, cuja saída ele ou ela ocultam do consorte, também ia ficar meio difícil de disfarçar. Tudo ia ficar difícil de disfarçar e até quem quisesse fugir ou sumir provavelmente não conseguiria. Com certeza, não sei como, surgiria um mercado negro de moedas estrangeiras e haveria gente acumulando ouro para garantir a liberdade até mesmo de sair do País. Talvez viesse a tornar-se dispensável prender criminosos, poupando-nos do vexame de não dispormos de prisões resort, como na Suécia. Bastaria uma ordem ao Centro de Movimentação Financeira Livre (um pouco do newspeak do Orwell cai bem nestes casos) para que o cartão do indigitado fosse bloqueado, com a consequência de que ele não poderia nem tomar um ônibus. E, evidentemente, o governo saberia da vida privada de todos os cidadãos. Tenho a certeza de que, no caso do Brasil, onde a Receita Federal é um exemplo de inatacabilidade, isso não seria problema, mas, não sei por que, apesar de nunca haver sido muito bom no seu manejo, ainda prefiro que exista dinheiro mesmo.


Certas coisas “erradas”, ou vistas como até mesmo enganos de Deus (é engraçado como uma espécie que tem dificuldade para organizar um campeonato de futebol oferece correções à Criação), são uma tentação aparentemente irresistível, para os reformadores. Por exemplo, a falta de terras aráveis ou habitáveis não ocorreria (aliás, não há falta de terras aráveis, mas é uma dessas coisas que se afirmam em conversa e ninguém discute), se não houvesse desertos. Não seria tão melhor que o Saara fosse todo transformado num oásis temperado e cultivado? Claro, seria, com o resultado de que o Mediterrâneo ia virar um mar glacial e os europeus todos, notadamente os escandinavos, passariam à condição de picolés.


Acabar com os insetos, essa peste que vive torrando a paciência da Humanidade, liquidando lavouras e causando doenças, nada mais desejável. Lembro agora que, faz poucos anos, houve um discreto alarme em relação a uma doença misteriosa que acometeu abelhas no Meio-Oeste americano, responsável por uma parte crucial da produção mundial de comida. Temeu-se que as abelhas sumissem e, com elas, a polinização das plantações e, em última análise, a comida. E ainda bem que nenhum reformador anti-inseto chegou nem perto de eliminá-los, pois é bem mais fácil eliminar o homem, a Natureza é sábia. Os tubarões, bichos horríveis que estraçalham os banhistas e só servem para matar, são em grande parte também responsáveis por nossa sobrevivência, pois ajudam a controlar as populações de focas, pinguins e outros comedores de peixe, que do contrário desequilibrariam a vida nos oceanos.


A proposta de eliminar a dor também é interessante. Já a ouvi discutida diversas vezes, havendo mesmo quem torça para que, no futuro, a tecnologia suprima completamente do nosso dia a dia as dores de causas externas, nada de dor de queimadura, corte, pancada, etc. Claro, no fim de algum tempo assim, ia sobrar muito pouca gente com a mão inteira, já que a dor não avisaria quando se estivesse cortando fora um pedaço de dedo, ou queimando-o no fogão. Não, isso nem na Suécia. Já quanto à extinção do dinheiro, não estou tão seguro. No Brasil, não na Suécia. Não é possível que o governo deixe passar essa oportunidade, ainda nos restam oito meses de salários para pagar de impostos e as boquinhas a sustentar cada vez aumentam mais.


O Globo, 22/8/2010