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O problema da agonia teórica

 

Normalmente, a banca de Salvatore não está muito movimentada, na hora em que chego para pegar os jornais e, logo depois, o pão na padaria. São mais ou menos cinco e meia e o dia parece amanhecer de mau humor, um friozinho penetrante emperrando juntas e fazendo Salvatore imprecar em calabrês. Na calçada da padaria, um grupo de moças e rapazes, provavelmente saído de uma festa, toma o café da manhã em algazarra, sob os olhares invejosos dos coroas. Claro que também invejoso, percebo que um casal me acena, aceno de volta, sorrio para o grupo. Que beleza, só se tem 20 anos uma vez, penso, antecipando uma volta à casa imerso em filosofias de velho. Mas sacudo a cabeça para espantar bobagens e entro na banca, onde uma sacola já me espera, com os jornais de sempre.


- Frio, hein? – digo eu, esfregando os braços.


Só então percebo um senhor à minha frente, me encarando com ar sério, embora afável.


- Está na época – disse ele, antes de eu lhe dar o bom-dia que tencionara.


- Como?


- Eu disse “está na época”. O senhor disse que está frio, eu estou dizendo que está na época, não podemos nos queixar. Quando é inverno, faz frio. Às vezes mais, às vezes menos, mas sempre faz.


Concordei com ele, eu falava só por falar. Mas ele não deu a conversa por encerrada. Ou muito se enganava ou eu era o escritor, não era, o que escreve em jornal? Muito prazer, muito prazer, mas não vá escrever nenhum artigo contra o inverno!


- É que os jornais reclamam de tudo e, na minha opinião, isso não é correto – acrescentou. – O senhor vê esse caso da Receita Federal? A imprensa toda está reclamando.


- Mas tem de reclamar mesmo, isso é uma coisa muito grave.


- Não sei qual é a gravidade, é perfeitamente normal. Se dá para saber se o indivíduo tem rabo preso na Receita, por que não saber? Se interessa, se pode ajudar a ganhar eleição? É para essas coisas que o sujeito luta para chegar ao governo. Ia estar no governo pra que, pra ficar na mesma situação que quem não está? Onde é que isso entra na cabeça de alguém?


- Mas aí há uma confusão, uma coisa é o Estado, outra coisa é o governo. O Estado é distinto dos homens que o conduzem, Estado é uma coisa, governo é outra. O Estado não é de quem ocupa o governo.


- Na teoria. Na prática, o senhor sabe que é. Fica aí essa teoria muito bonita e cheia de termos complicados, mas a nossa realidade não é essa. Na minha opinião, muitos dos problemas que vivem preocupando as pessoas não existem, é tudo criação dessas teorias que a imprensa e os intelectuais adotam.


- Mas que o Estado é diferente do governo não é uma teoria, está na Constituição.


- Então? Teoria. A Constituição também é muito teórica, é por isso que em grande parte não é respeitada.


- Eu não concordo, mas, em todo caso, a Constituição prevê que os ocupantes do poder sejam renovados.


- Isso é outra coisa, isso é da democracia, de que ninguém pode reclamar de sã consciência, porque todos acabam tendo sua oportunidade e quem não se faz na política democrática é porque não quer ou então é burro e não tem competência. A não ser casos extremos, como os comunistas, que só querem pra eles e mais pra ninguém.


- Eu não estou entendendo, o senhor acha que a pessoa deve entrar na política para roubar?


- Para roubar eu considero uma expressão muito forte. Não vou dizer roubar, mas se fazer. Se fazer é perfeitamente normal. Anormal seria o sujeito entrar para uma carreira sem querer se fazer, um cara desses ou é santo ou tem que ser internado. Quando o sujeito resolve entrar, ele sabe e todo mundo sabe que é pra se fazer. Tanto assim que todos se fazem. E todo mundo já sabe que é para isso, está todo mundo acostumado, não há nada de mal, qualquer um pode chegar lá. Não é somente se elegendo, não, é conseguindo uma boa colocação, aproveitando bem o voto, sabendo mexer os pauzinhos, tem pra todo mundo e quem se queixa é porque não soube pegar o seu.


- Eu não posso concordar com o senhor. Nem todo mundo que entra em política entra para se fazer.


- Me aponte um. O senhor é capaz até de citar uma porção, mas isso é o que eles têm no papel, não de verdade. Até mais gordos todos ficam, é natural.


-Eu acho que essa visão que o senhor tem é muito negativa, não se pode pensar desse jeito.


- Claro que se pode, é só deixar dessa agonia teórica. Tudo bem que exista a teoria, eu compreendo, faz parte, o intelectual e o jornalista têm que procurar em que se ocupar. Eu só não compreendo é essa agonia teórica interferindo na normalidade das coisas. Agora mesmo eu li aí um crítico dizendo que nós não faturamos a Copa de 2010, mas vamos superfaturar a de 2014. Pra mim, isso não é razão de crítica é a realidade da oportunidade de quem se preparou para prosperar. Está certíssimo, só está errado na teoria. Eu acho que vocês da imprensa deviam se mirar no presidente, que não tem nenhuma dessas agonias teóricas. E quem é que está por cima da carne-seca, ele ou vocês?


O Globo, 25/7/2010