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Devolveram os trópicos

 

É madrugada, ainda está escuro, mas, entre os muitos erros de fábrica com que nasci, está o do despertador interno, que, mesmo que eu tenha ido para a cama duas horas antes, começa a disparar por volta das cinco e enche a paciência até que eu me levante. Desde pequeno, sempre achei bonito o sujeito se levantar lá pelas onze ou meio-dia, coisa de artista de cinema, que acorda lindo, barbeado, penteado, de roupão monogramado e tomando um drinque longo de vodca com suco de laranja, no jardim de inverno envidraçado, esperando a chegada esvoaçante da artista. Mas suponho que para isso devo aguardar mais algumas encarnações, porque, se insisto em ficar na cama, o despertador recorre a meu departamento de culpa, que é o mais fornido que conheço e já foi objeto de estudos psicanalíticos e psiquiátricos. No mínimo, ouço a voz tonitroante do padre Brito, flamívomo (dicionário – hoje é domingo, dia de exercício e, além do mais, estamos celebrando cem anos da morte de Euclides da Cunha, façam sua parte) pregador de minha infância, explicando como seriam atiçados às barricas de óleo fervente do inferno os pervertidos que acordam depois das oito da manhã. Portanto, saio da cama.


Ou não saio. Assim que jogo o cobertor para o lado e tento erguer-me, sou paralisado por uma onda de frio. Ainda estremunhado, tenho um sobressalto. Sem me lembrar como ou quando cheguei, estarei em Berlim, de janela aberta? Não, estou em casa mesmo e faz um frio do cão. Percebo que sair sem proteção adicional é uma temeridade e me enrolo num cobertor, para empreender a perigosa travessia até o armário, onde pego um esquecido moletom, que envergo às pressas. Pronto, eis-me de moletom, diante do computador. Devo estar parecendo o roupeiro uniformizado da delegação brasileira aos Jogos Olímpicos da Terceira Idade. Penso em conferir minha aparência no espelho, mas a prudência prevalece e não abandono o teclado. Esfrego uma mão enregelada na outra, agito as pernas para aquecer-me. Não, não estou em Berlim, mas a diferença é que lá as casas são aquecidas e aqui não. Lá eu andava dentro de casa de bermuda e sem camisa, aqui tenho de andar de moletom. Será, Deus meu, que as embananações climáticas vão piorar mesmo e daqui a pouco vamos ter de encomendar uma lareira? Fico pessimista, ao rememorar, sem muita saudade, embates havidos com o frio, na vida airada que tenho levado. Sempre fiz de mim mesmo a imagem de um sujeito pacato e caseiro, mas, pensando bem, já vivi muitas aventuras. Recordo-me especialmente da valente Freamunde, cidade do norte de Portugal, perto do Porto. Lá estive, faz muitos anos, hospedado na casa de um grande amigo meu. Freamunde, esclareço aos que injustamente a ignoram, é celebrada como a terra dos capões, pois lá, por artes seculares, se produzem os melhores galos capões de todo Portugal, quiçá de toda a Europa. É de comover o orgulho com que eles se apresentam e declaram orgulhosamente: “Sou da terra dos capões!” – é bonito ver esse amor à própria terra.


Mas não fui lá por causa de capões, embora tenha desfrutado de um belo arroz de capão à moda da terra. Hoje sei que minha estada por lá foi em nome do progresso da ciência, porque enfrentei um dos piores invernos da história da região, com direito a nevascas e ventos uivantes, e descobri diversas partes do corpo que antes não sabia que tinha. Como o aquecimento não era essas coisas, a hora da verdade era a hora do banheiro e também compreendi a razão por que meus anfitriões se benziam ao entrar nele, pois requeria considerável fortaleza física e emocional. Ao deixar a cidade, despedi-me sugerindo que adotassem para a cidade, em trocadilho com seu nome, a alcunha jocosa de Fria Bunda. Eles acharam graça, mas não sei se a adotaram.


E frio parece bonitinho no cinema, mas quem já morou em país frio sabe a mão-de-obra que dá. A começar por neve, que geralmente emporcalha tudo e vira lama imunda ou gelo imundo, em que a gente escorrega o tempo todo. Em Berlim, primeiro mundo, vários amigos meus, todos de classe média, subiam quatro ou cinco andares (elevador por lá não é tão universal assim), carregando o carvão para o aquecimento e desciam os mesmos quatro andares levando as cinzas para o lixo. No meio-oeste americano, onde também já morei, ajudei vários outros amigos a “invernizar” (winterize) suas casas e seus carros, ou seja, preparar tanto habitações como automóveis para enfrentar o inverno. Quanto aos carros, lembro bem, o camarada tinha de botar anticongelante na água do radiador, correntes nos pneus e mais inúmeras trampinzongas, para, assim mesmo, ficar meio ilhado em casa, às vezes semanas a fio. E, se conseguisse sair, tinha que vestir uns vinte quilos de roupa, de ceroulas térmicas e meias de meia polegada de espessura a capotões, cachecóis, chapéus ou toucas, protetores de ouvido e luvas. É tese comumente debatida que a baixa taxa de natalidade dos países frios se deve à trabalheira que dá tirar a roupalhada toda. Sei de brasileiros e brasileiras que, em diversas oportunidades, desistiram de chegar aos finalmentes porque, removido o saião, ficaram exaustos logo depois de extraída laboriosamente a primeira bota.


Mas não, nada disso vai acontecer aqui, é só um friozinho bobo, que passa daqui a alguns dias. Ou não? Antigamente não havia nada disso por aqui, mas hoje a toda hora se fala em temperaturas abaixo de zero, tornados, granizo e até furacões. Por que não frio polar? Considerando que alguns asseveram que, sob frio excessivo e desprotegida, empedra-se e cai a documentação masculina, corremos o risco de vir a ser também a Terra dos Capões, e não na área galinácea? Este frio estará querendo nos dizer alguma coisa e o que hoje é metáfora amanhã, por castigo, será literal? Cala-te, boca.


O Estado de S. Paulo, 30/8/2009