Cabe-me abrir hoje - uma honra que me foi deferida pela nossa presidente - este ciclo de palestras da Academia, que procura justamente dar uma visão das grandes linhas de todos aqueles que pertenceram a esta Casa de cultura. Acho que a história da Academia Brasileira de Letras confunde-se com a história da literatura brasileira. São cem anos de serviços prestados à cultura, à devoção de valores espirituais, e sobretudo, à guarda de nossa língua, a língua portuguesa que, na expressão já dogmática de Fernando Pessoa, é a nossa pátria: “Minha pátria é a língua portuguesa”. Essa língua que, não tendo terras onde ser falada, uma vez que Portugal era muito pequeno, ganhou os mares e começou assim a ser a língua dos navegantes, a língua dos descobridores, a língua das caravelas que saíam pelos mares afora. Foi língua de corte na África, como o francês tinha sido na Europa, e nessa aventura lingüística deixou palavras nas duas costas da África, ocidental e oriental. Caminhou pelo oceano Índico, passou pelo estreito de Malaca e ganhou os mares da China. E no navio de São Francisco Xavier, e também no navio do Selo Vermelho, chamado “navio do Trato”, que saía de Goa, chegou até Nagasaki, no Japão, onde deixou palavras, recolheu palavras, enriquecendo o idioma que, atualmente, é um idioma de cultura no mundo inteiro.
A língua portuguesa teve a grande ventura, vamos dizer assim, para usar um termo antigo, que foi o fato de ter contado com a presença de um poeta e de um soldado que, escrevendo Os Lusíadas, foi capaz de eternizar os seus cânones lingüísticos, tornando-a uma língua canônica. Estou vendo ali Houaiss a bater a cabeça, pois gosta muito da expressão “canônica”. Então, na realidade, foi isso que deu a estrutura fundamental e básica da língua portuguesa.
Essa língua tinha um destino: ser uma língua de pioneiros, e quando ela não teve mais mares por onde ser levada, e não havia terra, ela encontrou os mares das terras do Brasil, essa vastidão imensa do nosso território, e aqui manteve a mesma tradição inicial, com que se tinha construído. Aqui no Brasil, foi a língua dos bandeirantes, a língua dos faiscadores, a língua das Entradas e Bandeiras, a língua dos emboabas, enfim, ela continuou com a sua tradição. Começou a impor-se sobre os idiomas que aqui eram falados, sobre as línguas que aqui eram faladas, começou a matar os dialetos e só parou no contraforte das grandes montanhas.
Com este milagre, ela também se transformou numa coisa extraordinária para o Brasil, talvez como um produto ou um subproduto, por ter sido o instrumento da coesão e da unidade política deste país. Quer dizer, tornou-se o grande instrumento responsável, historicamente, pela integridade que temos, pela consolidação da nossa nacionalidade.
Eu queria dizer também algumas palavras sobre a Academia, que é a guardiã da língua.
Afrânio Peixoto, que foi presidente desta Casa, um grande nome da literatura brasileira, resumia não a função da Academia, mas o acadêmico numa frase. Ele dizia: “O que é um acadêmico?” E definia: “O acadêmico constitui dois discursos: um, que ele ouve, de elogio, todo vaidoso no dia da sua posse, entre as festas da chegada; e outro, que ele não ouve mais, porque está morto, no dia em que o sucessor toma posse na sua Cadeira.
Já o nosso presidente primeiro, Machado de Assis, dizia que esta Casa é “a glória que fica, eleva, honra e consola”. É a nossa vaidade.
Quando entrei para a Academia, há dezoito anos, relatei em meu discurso de posse a melhor definição de Academia que eu conheço. Ela pertence a meu avô, Assuero Ferreira. Era um nordestino rijo, de Ingá do Bacamarte, que da Paraíba foi para o Maranhão, onde só se matava mais gente - aqui está o professor Celso Furtado, que é de Ingá, no Catolé do Rocha, ali bem perto. Meu avô foi para o Maranhão na seca de 1921. Ele até recitava uma quadrinha, que dizia: “Eu vi a cara da fome / na seca de 21. / Ô bicha da cara feia! / só mata gente de jum!”
Em 1952, já com esse meu feitio de que me acusam sempre - que acho muito bom - de gostar muito da liturgia, fui logo me preparando para entrar para a primeira Academia, e tendo publicado o primeiro livro, entrei para a Academia Maranhense de Letras. Fiquei muito feliz e escrevi a meu avô, que estava no interior, aquele sertanejo rijo e forte, um homem da terra, lavrador, fiz uma carta a ele, narrando: “Meu avô, entrei para a Academia.”
Ele recebeu a carta, ficou todo contente e, como naquele tempo se fazia, comemorou ostensivamente. Comprou uma caixa de foguetes e começou a soltar foguetes, lá na sua casinha do interior. A sua vizinha, D. Tudinha, chegou e disse: “Mas, seu Assuero, o que é isso? O senhor está tão alegre! O que houve? Que boa notícia é essa?” Ele respondeu: “O meu neto José entrou para a Academia.” Ela ficou curiosa: “Seu Assuero, o que é Academia?” Ele então respondeu: “Eu não sei, minha comadre, só sei que é coisa muito grande.”
É com este sentimento de importância da Academia Brasileira de Letras na história da nossa literatura que começo por afirmar, ao falar dos romancistas da Academia, que é mais fácil enumerar os poucos que não pertenceram à Academia do que aqueles que a ele pertenceram, porque todos são grandes escritores, os maiores expoentes de toda a nossa literatura, que dominaram todos os caminhos da prosa e da ficção brasileira, e que, nesta Casa, são representados ao longo destes cem anos.
É um universo infindável de tendências, de estilos, de modos de contar, de ver o mundo, que cada romancista da Academia vem ajudando a compor ao longo deste século. Há uma infinidade de luzes nas obras que iluminam o universo da nossa ficção, e é sob essas luzes que podemos compreender melhor a realidade brasileira. É sob a intensidade dessa luz que podemos ler este grande romance que é o Brasil, escrito desde Machado de Assis e todos os demais que continuaram a escrever, cada qual no seu estilo, com sua visão da nossa realidade, com sentimento e experiência, uma grande obra coletiva, que dá uma identidade e uma força própria à literatura brasileira, inserindo-a com esses valores na literatura universal.
*Já que vamos entrar para falar dos romancistas, seria bom dizermos um pouco sobre o romance. O que é, realmente, um romance? É um gênero literário em que se constrói um mundo imaginário ou real, um episódio, um instante, uma vida, que se eternizam através da palavra escrita da ficção. O seu desenvolvimento autônomo, como gênero, tem características próprias, que são muito recentes na história da literatura, embora suas fontes estejam mergulhadas na história do homem, desde o início da sua aventura na face da Terra, guardadas na memória escrita ou oral, e chegadas até o dia de hoje, desde os nossos antigos, nas canções de gesta, medievais, nas epopéias, no conto popular, enfim, nessas raízes profundas que constituem as primeiras linhas da história do romance.
Aurélio Buarque de Holanda, no extraordinário livro que é Mar de histórias, coleção de contos universais que teve a oportunidade de organizar, junto com Paulo Rónai, apresenta um prefácio primoroso, em que não se aprofunda muito sobre o conceito de literatura, mas diz que é muito difícil estabelecer a linha divisória entre o conto, a novela e o romance. O conto - diz ele - é o que se conta, com a intenção estética e uma expressão literária, enquanto a novela, a narrativa, é um episódio só, desde que esse episódio não seja muito longo; a novela assim fica entre o conto e o romance. Já Littré tenta visualizar o problema do romance numa questão de dimensão, da quantidade de páginas a serem escritas. Diz que, a rigor, um romance não é senão um conto bastante longo.
Eu não acredito que se possa estabelecer essa definição de romance apenas pela extensão. O romancista se distingue do contista porque ele cria tipos, dos quais ele se liberta inventando cenas e episódios. O contista encontra uma situação e empresta alma àquela situação. Entre o conto e o romance, sem dúvida, há uma diferença de natureza, não de grau. Na verdade, o romance moderno extrapola, de certo modo, qualquer padrão. Ele se inventa e reinventa, a cada momento, no formato, na temática e na técnica.
Mas há muitos anos, há muito tempo, se estuda a natureza do romance. Já em 1670, num livro célebre, em que disserta sobre a origem do romance e o pensamento clássico dos séculos XVII e XVIII, Huet não considerava o romance um gênero literário, mas um gênero mais ligado aos estilos retóricos, mistos.
Na segunda metade do século XIX, há um grande interesse sobre a teoria do romance, gênero que passou a ser o mais massificado da literatura, e que ao longo do século XIX teve predominância muito acentuada, principalmente na Europa. Assim o romance tem uma história, uma evolução. Lukács, grande escritor húngaro, escreveu o livro A teoria do romance, no qual o seu pensamento se abre à história. Escrito entre 1914-1915, em plena guerra, expressava a rejeição de Lukács à burguesia e à social democracia, que haviam aprovado aquela guerra. Lukács propunha uma série de diálogos entre grupos de pessoas que desejavam fugir à psicose da guerra, à maneira dos narradores do Decamerão de Boccaccio que queriam fugir da peste. Mas, ainda dentro da filosofia kantiana, Lukács não fazia nenhuma mediação entre a subjetividade e a objetividade.
Após a Revolução russa de 1917, converteu-se ao marxismo e ele prórpio, assumindo uma visão hegeliana, reconheceu as limitações da sua teoria.
Ele fazia uma certa diferença, examinando o romance com aquela força que tinha no século XIX, mas dentro de uma tipologia e de um esquema evolutivo que o situavam muito mais na teoria hegeliana, da qual Marx se valeu para construir a teoria da produção. Assim Lukács achava que era o próprio romance, e vinculava-o à sociedade burguesa, da qual, dizia ele, o romance era uma conseqüência. Na tipologia das formas romanescas, por exemplo, ele considera decisivo saber se, em relação ao real, a alma do personagem é muito pequena ou muito grande. Essa dualidade permite pôr à luz alguns aspectos do tipo escolhido. Seguindo esse método Lukács analisa o Dom Quixote de Cervantes, analisa romances de Balzac e de Flaubert, de Tolstoi e de Dostoievski. Para ele, a obra de Scott, a obra de Goethe, a obra de Balzac, por exemplo, se revestiam de um significado teórico: elas mesmas, durante a sua feitura e depois de consideradas, criaram o que era a filosofia do próprio romance.
Um seguidor de Lukács, Lucien Goldmann, retoma o conceito de estrutura dinâmica significativa de Lukács e completa a visão do romance moderno como sendo a principal forma de expressão da sociedade. Volta àquela tese da Teoria do romance que afirma que o tipo humano mais válido no mundo atual é o indivíduo complexo e problemático. O romance é a principal forma literária de um mundo no qual o homem não se sente nem em casa nem estrangeiro, e é necessário, para que haja romance, uma oposição radical entre o homem e o mundo, entre o indivíduo e a sociedade.
O romance, assim, não ficava, como não ficou, imune à guerra ideológica que durou cento e tantos anos, onde participou com as duas palavras-chaves que ocuparam a história da humanidade durante esse tempo, que são a palavra “revolução” e a palavra “revolta”. A revolução, como um sentimento coletivo, e a revolta, como um sentimento pessoal.
Ao lado do conceito de romance burguês começou a nascer uma literatura, que não seria a da torre de marfim, em matéria de romance, mas um tipo de romance que, em alguns casos, seria chamado de romance proletário, noutros de romance social, de romance do herói positivo, em que os elementos épicos resultam de tendências sociais, de um problema social nitidamente agudo.
O processo da luta que o mundo atravessou, que permeou também a literatura, fez com que esta tomasse consciência do tempo e do espaço histórico reais e do homem verdadeiro, como dizia Mikhail Bakhtine. Ele mesmo, num estudo da história do gênero, verificou como essas fontes chegaram até o romance moderno – como é que o homem tinha começado a contar, aprendido a contar histórias, a transmitir sentimentos, costumes – e estabeleceu três tipos de romance: o romance de provas, o romance de costumes e o romance biográfico.
Historicamente a gênese do romance liga-se às épocas de absolutismo autoritário da língua única, posta em questão pelo surgimento, no horizonte cultural, de línguas estrangeiras: a época helenística, o Império Romano, o Renascimento, quando as línguas nacionais da Europa substituem o latim.
Para Bakthine o romance é o único gênero literário que se constitui em contato com a realidade e é um microcosmo de linguagens diversas. Ele examina a estrutura romanesca no romance grego e latino, na biografia antiga, no romance de cavalaria, no folclore.
Ele buscou a primeira fonte desse romance, um romance de aventura, que ele chamava de um “romance de provas”, no romance grego, nos sofistas, nos textos escritos entre os séculos IV e II a.C., como Os etíopes de Heliodoro, romancista grego do século III; os romances de Xenofonte; Daphnis et Chloé de Longus, romances que nos chegaram muito fragmentados, mas com uma enorme semelhança entre si, com os mesmos ingredientes dentro deles, com temas que não entravam nas séries temporais da História, mas ficavam nos costumes e nas biografias. Analisando aquele tipo de romance, ele constata que o tempo mesmo nada muda, que o mundo é feito de sentimentos absolutamente imutáveis.
O segundo tipo que ele identifica é o romance de costumes, é o Satyricon, de Petrônio; o Asno de ouro, de Apuleio, escritor primoroso de Cirta, cidade da Argélia, que escrevia em latim e que nos deixou um testemunho fantástico das suas histórias. É um tipo novo do “tempo de aventuras”, diferente do romance grego anterior, que aparece como um “tempo de costumes”.
Os acontecimentos, nesse caso, evocam a vida inteira de heróis e um certo romance de crise, em que a textura se desenvolve sob dois aspectos decisivos de uma vida e define todo o caráter: duas ou três imagens diferentes, de um mesmo homem, imagens que são reunidas, imagens que são desunidas pelas crises, e também pelas regenerações. Comparado ao primeiro tipo, o romance grego coloca uma marca profunda sobre o próprio homem e sobre a vida inteira. É um tempo de aventuras, de conhecimentos excepcionais, insólitos, comandados pelo acaso e definidos por uma concordância ou por uma má discordância.
Como terceira linha, ele também pôde identificar, entre as fontes das quais nasceu o romance moderno, as formas autobiográficas, as biografias notáveis cuja influência estendeu-se muito no romance europeu. Constitui exemplo canônico desse tipo o que poderíamos, com alguma impropriedade, chamar de “romance biográfico”, A Grécia clássica oferece os exemplos da Apologia de Sócrates e o Fédon, de Platão. As raízes desse tipo de romance estão naquelas formas gregas do encômio, que narrava a vida daquele que procura o conhecimento, do elogio fúnebre que então se fazia.
A autobiografia helenística tardia e a autobiografia cristã apresentam interesse particular no estudo da forma romance porque conjugam a história pessoal com os elementos do romance de aventuras e de costumes.
Na Idade Média, o romance de cavalaria distancia-se do grego e aproxima-se da epopéia, da sátira, da paródia, da narrativa picaresca. A obra- síntese, disputando mesmo ser um dos monumentos maiores da inteligência da humanidade, é o Dom Quixote de Cervantes, o romance do anti-herói, do pícaro contra a sociedade, contra tudo. O romance se processa numa forma muito engenhosa. Os mesmos traços manifestam-se mais adiante. Aí vemos como Bakthine vai aprofundando e ampliando seus estudos, já em Quevedo e em Rabelais. Em Rabelais, ele busca as fontes populares do riso, para construir essa obra extraordinária na crônica popular, em todas as suas formas de expressão.
Nosso interesse particular é sobre as características próprias e definidas do romance, como se encontra na sua estrutura já no século XIX, quando, então, ele se consolida como um gênero literário independente, com características muito próprias.
O romance brasileiro é caudatário dessa linha que trouxemos da Europa, nas suas formas e influências, no seu universo, que abrange um campo tão rico, que é impossível separar em escolas, classificá-lo segundo modelos e esquadros, muito do domínio dos historiadores da literatura. Assim, o romance brasileiro é de costumes, de aventura, de personagem, é psicológico, é histórico, reflete um país novo, cuja temática se impõe e surge da própria vida marcada pela gente, pela natureza e pelas pessoas.
Como um país mestiço, nossas raízes refletem-se na literatura que construímos, com a riqueza extraordinária das fontes do próprio Brasil e das terras que nos deram povos que, miscigenados, ao invés de nos fazerem perder a nossa característica, construíram a nossa identidade. Essa é a grande chave, que eu considero a característica do romance brasileiro, do gênero romance no Brasil.
Quando a Academia Brasileira de Letras foi fundada, o romance brasileiro estava começando, mas nem por isso ele deixava de trazer, no seu impulso inicial, grandes nomes e obras que, hoje, são marcas fundamentais na nossa literatura. A literatura brasileira, na definição clássica, todos sabemos, é a definição de todas as obras literárias produzidas no Brasil, desde 1500. Portanto, se nós chegarmos ao romance, vamos ver que o romance brasileiro são todos os romances escritos no Brasil durante esse período.
A Academia Brasileira de Letras, ao organizar seus quadros, teve o cuidado – como não podia deixar de ter, uma vez que o próprio Machado distingue muito bem, algumas vezes, que o romance era a forma mais massificada, mais popular do gênero – de trazer, entre os seus fundadores, os grandes romancistas daquele tempo, todos os que eram grandes romancistas na época de sua fundação. Mas ela quis também trazer os grandes romancistas anteriores à sua fundação, que são as figuras fundamentais da nossa literatura no gênero, e os colocou como patronos das Cadeiras da Academia, a fim de que eles aqui estivessem numa situação não de ocupantes, mas numa situação de patronato, acima daqueles que estavam ocupando as suas Cadeiras.
Aí, então, não podiam deixar de ntrar Joaquim Manuel de Macedo, Franklin Távora, Raul Pompéia de O ateneu, Júlio Ribeiro de A carne e Manuel Antônio de Almeida, autor de um livro que todos no Brasil têm na lembrança, que é Memórias de um sargento de milícias.
Na lista que dei aqui, naturalmente, parecia que eu tinha me esquecido de José Alencar. Mas Alencar é um nome que tem que ficar, realmente, um pouco isolado, porque ele é o pai fundador, fundador porque é o patrono da Cadeira 23, e quem o escolheu para patrono foi Machado de Assis. Sem dúvida alguma, Alencar era o escritor que possuía o maior conjunto de obras de ficção. Era um intelectual, não só o escritor, o romancista, mas também um pensador político, aquele grande homem que dominava a cena política do seu tempo. Lembro-me bem de quando li os discursos do Alencar, discutindo com o Visconde do Rio Branco sobre as leis da Regência, discursos extraordinários, embora se deva reconhecer que o visconde do Rio Branco também era um bom orador parlamentar.
O que pensava Machado de Assis sobre o romance? Ele deixou um precioso acervo, em várias passagens de sua obra, sobre esse assunto. Primeiro, ele achava que as formas mais cultivadas no Brasil eram o romance e a poesia lírica, sendo o romance a mais apreciada. Dizia Machado que, no nosso país, não se faziam livros de filosofia, não se faziam livros de lingüística, de crítica histórica, de alta política, muito raros eram esses livros, até porque não havia mercado para esse tipo de literatura. Daí ele achar que o romance se impusera no Brasil como um gênero predominante, que aponta o sinal e massifica a literatura. Inclusive – ele acrescentava – porque é “muito sensível ao sentimento do nosso povo”, que gosta do gênero romance.
Certamente, quando Machado de Assis colocou José de Alencar na Academia, considerava-o o maior de todos os nossos antecessores na área.
Esgotada a convocação dos patronos, a Academia vai formar os seus quadros, e aí traz como romancista maior, o Sol, que era o próprio Machado; traz Coelho Neto, Aluísio Azevedo, Valentim Magalhães, o Visconde de Taunay, Graça Aranha – e aqui o auditório vai me perdoar porque, dos seis, três eram do Maranhão.
Ao longo de nossa existência, esta Casa continuou a abrigar os grandes romancistas do Brasil. Talvez seja difícil que não se encontre, em cada uma das nossas Cadeiras, um ocupante que não tenha escrito um romance. Ou romancista de conjunto de obras, ou romancista bissexto, ou romancista encabulado, vamos dizer assim, aqueles que, às vezes, nem publicam; escrevem mas não publicam. O nosso querido Austregésilo de Athayde era um deles, porque escreveu também um romance.
Verificando nossos quadros, vamos ver quem a Academia trouxe dentre todos os nossos grandes romancistas. Hoje, por exemplo, começaremos pelo nosso Ariano Suassuna, cuja temática armorial, buscando as raízes medievais com que foi garimpar as fontes de sua obra, tanto admiramos. O nosso Bernardo Élis, de Ermos e gerais, do Veranico de janeiro, também sobre a vida simples do interior de Goiás, que ele retrata tão bem nos seus livros. O nosso Carlos Castello Branco, que era do Piauí, jornalista que também escreveu O arco de triunfo, o seu único romance. O grande Cyro dos Anjos, com todas as suas obras, acima de todas elas o inesquecível O amanuense Belmiro. Geraldo França de Lima, de quem o nosso Guimarães Rosa dizia que, com uma linda simplicidade, mas com muita beleza, havia retratado a vida urbana das pequenas comunidades de Minas Gerais.
Herberto Sales, o homem da mineração, do diamante, da madeira, de livros importantíssimos, como Cascalho, Além dos marimbus, cuja prosa de extremo vigor reconstruiu, fez uma transfiguração, transformou aqueles temas em excelente material de literatura. Mário Palmério, com Vila dos confins e, depois, Chapadão do bugre – acho que Vila dos confins domina a sua ficção, deixando o Chapadão do bugre um pouco mais embaixo.
Nélida Piñon, de cuja obra romanesca nem vou falar! Oscar Dias Corrêa, que escreveu também um romance, uma sátira política, para não deixar de lado a tradição acadêmica de cada um ter que escrever um romance. Orígines Lessa, nosso Orígenes extraordinário, de cuja convivência até hoje temos uma profunda saudade, com o romance Rua do Sol, o seu O feijão e o sonho. Guimarães Rosa, de quem não vou falar, porque precisaríamos de uma conferência inteira só para falar de Guimarães Rosa. Dinah Silveira de Queiroz, Marques Rebelo, Osvaldo Orico, que escreveu também um romance, sobre um tema amazônico, chamado Seiva. Múcio Leão, que escreveu um livro, muito no estilo de Anatole France – estou citando para não deixar que eles fiquem esquecidos, pelo menos com um livrozinho. Adonias Filho, que grande romancista a Academia teve em Adonias! É uma pena que a sua obra não tenha, ainda nestes dias, merecido uma ressurreição. É necessária a ressurreição de Adonias; talvez seja uma tarefa da Academia reeditá-lo, porque as gerações atuais precisam conhecer a sua obra.
O dramaturgo Dias Gomes, que escolheu outra linguagem literária, é igualmente um grande nome da ficção. Outro nome que precisa de uma ressurreição é o extraordinário José Lins do Rego. Às vezes fico triste, quando vejo que a mocidade não tem lido José Lins do Rego, que é uma presença, uma página extraordinária da literatura brasileira, com uma obra-prima, que é o Fogo morto, e mais ainda, que criou personagens definitivos, como aquele Vitorino Papa-Rabo, um Quixote nordestino, inesquecível, extraordinário; como aquele homem da justiça absoluta que está em Fogo morto, aí esquecido, sem que se possa trazê-lo de volta
Ribeiro Couto, autor de Cabocla. Paulo Barreto, o nosso João do Rio, que foi um homem muito lido no seu tempo, como romancista, e que também pertenceu à Academia, na tradição de esta Casa ter sempre, dentro dos seus quadros, em todos os tempos, os grandes nomes do romance brasileiro. Cláudio de Sousa, com o seu livro Mulheres fatais. José Cândido de Carvalho, o nosso José Cândido, esse grande ficcionista brasileiro, que nós ainda conhecemos, foi nosso companheiro, conviveu conosco, e que quando a gente o via, colocava logo, na figura do autor, os grandes tipos que ele tinha criado, na sua capacidade de escrever romances.
Paulo Setúbal, nos seus romances históricos. Otto Lara Resende, que também, para não negar a tradição, escreveu um romance, O braço direito. E eu também não posso deixar de dizer que, para seguir a tradição, igualmente escrevi “meus romancezinhos”, como dizia Osvaldo Orico.
Ao percorrer, então, a lista destes nomes da Academia, seria inteiramente enfadonho que procurássemos nomear cada um deles - Marly também já está preocupada - todo mundo está preocupado com as ausências, mas eles vão estar presentes.
Recordando a lista de romancistas que compõem o nosso universo narratista, nos últimos cem anos, começo por fazer algumas constatações. Verifico que já temos um conjunto considerável de escritores que compõem o mosaico e a tessitura da literatura brasileira, reconhecidos dentro e fora do Brasil, parceiros na formação de uma cultura brasileira, com uma personalidade forte, com a individualidade que se espera de um país da magnitude e da projeção regional e internacional do Brasil.
Já temos uma enorme massa crítica de nomes, tendências, estilos e visões do mundo. Esse conjunto é capaz de alçar a nossa literatura a um patamar muito elevado entre as literaturas do mundo inteiro, especialmente se formos capazes de continuar valorizando o que é bom, não deixando nunca que as rodas do tempo afastem de nós as grandes obras que foram cimentando o caminho da nossa literatura.
A imensa maioria dos nomes mais expressivos aqui encontrou abrigo, a ponto de constituir, talvez, o principal alicerce da Academia Brasileira de Letras, hoje centenária. Mas isso não é obra do acaso. É prova da força da nossa prosa de ficção. Por algum mistério, Machado de Assis, nosso romancista maior, foi o fundador da Academia, e Nélida Piñon, também romancista, é presidente da Academia, hoje, aqui, quando estamos reunidos para recordar os romancistas que a Academia trouxe para seus quadros nestes cem anos de aventura acadêmica.
Muitos desses romancistas são hoje nossos confrades. A Academia tem gente de carne e osso, que se tornou patrimônio da nação brasileira e da língua portuguesa, gente que todos nós veneramos, por quem temos grande devoção e com quem temos a felicidade de compartilhar a aventura humana, que se vai fazendo através do talento, gente com quem nós dividimos a experiência de viver um momento da nossa literatura, cheia de desafios e, também, de grande esplendor.
O romance ocupa enorme espaço na história do livro. Essa é a maior realização do gênero humano. Em cem anos, nossos romancistas ajudaram a escrever a história do livro, não só no Brasil mas também no mundo, com a parcela que agora representa a história brasileira. E o fizeram com uma grande originalidade, com um grande vigor. Muitas vezes, contra o obstáculo que todos temos, que é de um público que se vai reduzindo e concorrendo com uma mídia que tudo simplifica.
O grande obstáculo dos romancistas da Academia, assim como o do Brasil, é certamente o fato de que temos o desafio de trabalhar sobre caminhos que nós mesmos temos que construir. Por exemplo, no caso de autores como Balzac, Flaubert, Dickens, ninguém pergunta sobre a identidade de seus países, nem eles se arvoram em descobridores da natureza de seus países e das suas paisagens sociais. Trabalham com essas realidades como dados indiscutíveis e operam sob uma longa tradição, que remonta às origens históricas dos seus países. Por serem centrais, partem do pressuposto de que falam uma linguagem que é universal, que exprime uma realidade universal.
O romance brasileiro já comporta elementos extras em relação ao romance ocidental tradicional; por isso mesmo, ocupa um lugar especial dentro da nossa literatura e das nossas letras, mas também na definição da nossa própria nacionalidade. Por esse motivo, e porque fala tão diretamente à ontologia própria de cada brasileiro, o nosso romance adquire um valor especial, para além do valor puramente literário, filosófico e estético, que a literatura, de um modo geral, tende a ter para o leitor médio.
Nosso romance, assim, não é uma simples obra de escritura; é uma obra de fundação, e é esse traço que reúne os romancistas da Academia. Ler esses romancistas, conhecer as suas obras de ficção não é apenas parte da fruição de leitor; é parte do sentimento de ser brasileiro e de pertencer a um mundo particular, a uma cultura com personalidade própria, a um projeto coletivo de nacionalidade. Por conseguinte, o seu valor transcende bastante e nosso romance torna-se, ao mesmo tempo, uma obra de arte e, sem dúvida, um manifesto de independência e de liberdade da nossa própria literatura.
García Márquez disse, certa vez, que “os escritores latino-americanos escrevem todos, ao mesmo tempo, o mesmo romance, um mesmo romance”. Creio que essa intuição se aplica também a todos nós brasileiros. Todos que escrevemos, produzimos, de certo modo, esse mesmo e grande romance que é o nosso país, fundando-o, colocando-se nele, já que é um país tão recente, com uma literatura tão recente. Nosso romance comum, assim, se chama Brasil. E ele vem sendo escrito desde a nossa Independência, quando a tarefa de escrever se confundia com a própria fundação do país, e a arte de romancear era parte do reconhecimento que fazíamos da nossa identidade física, cultural, histórica e étnica. Escrever era parte de encontrar um lugar no mundo, de se diferenciar da metrópole, de olhar em volta para descobrir o nosso próprio mundo. A literatura, portanto, passou a ser a marca da busca de uma independência cultural e intelectual. Com uma independência que não é obra de um dia, mas de gerações, essa independência literária foi obra de uma geração de escritores.
Nos cem anos da nossa Academia, esse esforço prossegue, consciente ou inconscientemente, e o resultado ainda está em construção, ainda em processo de experimentação e de ensaio. Essa é uma particularidade de certas literaturas que não são do Primeiro Mundo. Compreender essa particularidade, aceitá-la, conviver com ela, colocá-la a serviço da criatividade e da projeção da nossa prosa de ficção é, sem dúvida, uma tarefa que incumbe a todos os escritores que fazem parte da literatura brasileira. Nossa narrativa nasceu quase que como um ato de afirmação de soberania. Narrar e construir a nacionalidade foram atos que, muitas vezes, se confundiram no Brasil do século XIX. Nossa grande narrativa de ficção nasceu como um exercício de criação, portanto, da própria nacionalidade.
A obra de José de Alencar - para voltar a José de Alencar - é um grande painel artístico sobre o Brasil urbano e rural do século XIX. Uma aventura de reconhecimento da nossa História e das nossas origens. Há em Alencar quase que uma antecipação de todas as independências que marcariam décadas e décadas da evolução de nossa narrativa. Encontramos nele todas as vertentes da nossa literatura, desde o intimismo urbano, quando ele escreveu Senhora; o regionalismo de O gaúcho; o indianismo épico do Guarani; o romance histórico de As minas de prata; o indianismo idílico de Iracema. Esse vasto painel narrativo, na verdade, foi um primeiro esboço, individual e genial, de toda uma realidade que se apresentava.
O que José de Alencar fez, individualmente, no Segundo Império, outros escritores continuaram a fazer depois, cada qual explorando um rincão, uma possibilidade, nesse mundo particular que se ia formando, com o desenvolvimento da civilização brasileira, na cidade, no campo, na costa, no interior, nas áreas tradicionais, nas zonas remotas e desabitadas. Cada romancista fez a sua parte nesse trabalho coletivo.
Machado de Assis identificou, no nacionalismo, a grande linha-mestra da literatura brasileira. Dizia ele, em 1873: “Quem examina a atual literatura brasileira, reconhece logo, como o primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia e romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país e não há a negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono do futuro.” A durabilidade e a atualidade dessas palavras são notáveis. Pensem em um escritor, qualquer um desses que honraram nossa cultura, com a sua memória ou com a sua presença, e verão como cada um deles vem ajudando a pintar esse gigantesco mural coletivo em que se transformou a prosa de ficção brasileira.
O regionalismo nordestino de José Américo de Almeida – tenho a honra de ter sido seu sucessor nesta Casa – que escreveu o primeiro de seus livros, A bagaceira, e quando veio a crítica sobre esse romance, ele mesmo disse, espantado: “Eu não sabia que o livro era tão grande.”
Machado fala também, ao expandir as suas descobertas sobre o instinto de nacionalidade que anima a literatura brasileira, daquelas características que depois se expressam no intimismo urbano de Lygia Fagundes Telles, no realismo engajado de Graciliano Ramos, no sertanismo fantástico de Guimarães Rosa. Este é o sentido maior que une a obra de todos os romancistas que povoam o universo das letras brasileiras e dão uma personalidade coletiva à nossa Academia.
Somos um país mestiço, “um pequeno gênero humano”, como dizia Bolívar, firmando-nos ainda entre as nações do mundo, e nada espelha melhor a ontologia das perplexidades dessa situação do que a prosa de ficção brasileira.
Por uma dessas sabedorias do destino, indecifráveis para quem quer ler o mundo através da razão, a Cadeira de Machado de Assis nesta Casa, romancista símbolo do passado, do presente e do futuro, é hoje ocupada por Jorge Amado. Há nessa feliz coincidência toda uma parábola, que descreve a evolução da narrativa brasileira neste século de existência da Academia, neste longo trajeto de amadurecimento e universalização de nossas letras. Quando falamos de literatura, nos referimos não a um conjunto de obras, mas a uma relação que se estabelece entre elas. A literatura brasileira não é apenas o somatório de obras escritas por brasileiros, e sim uma entidade maior, que traduz uma visão do mundo brasileira e uma visão brasileira do Brasil.
A Academia, com o seu universo de autores que vivem entre nós ou na memória, ajuda a estabelecer, de certa forma, parte desses vínculos temáticos, estilísticos, éticos, filosóficos, conceituais, que criam, do somatório de obras e autores individuais, um verdadeiro espaço literário, uma literatura. Pertencer à Academia, na condição de romancista, não é um gesto simbólico, é a conseqüência de pertencer a uma literatura. Não somos a soma de nomes que a lista de presença pode sugerir; somos parte de um todo, que é infinitamente maior do que a simples soma de nossas partes.
Não é por pertencerem à Academia que os romancistas são parte de nossa literatura. A Academia reconhece, talvez no seu grau mais elevado, essa condição fundamental de pertencer a uma literatura, de ser um marco de referência obrigatória, no conjunto das obras que formam a nossa literatura.
Fernando de Azevedo, em seu amplo painel sobre a cultura brasileira, aponta o dissídio entre as letras e a política e a criação da Academia Brasileira de Letras, aliado ao vigor que assumiu a reação estética, romântica, como os fatos mais importantes da vida literária no país, no crepúsculo do século XIX. Ele distingue, a grosso modo, duas correntes do romance nacional: a do Norte – neo-naturalista, dominada pelo gosto de fixar os aspectos da vida social, com José Américo, José Lins, Graciliano, Jorge, Amado Fontes, Rachel de Queiroz; e a do Sul – que antes se compraz nos estudos do mundo psicológico, moral e mental em que avultam, para citar alguns: Plínio Salgado, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, Marques Rebelo, Telmo Vergara, Érico Veríssimo e Octavio de Faria, apaixonados pela vida do interior e da arte de analisar o estudo da alma e o movimento das idéias e das paixões.
Sabemos o limite teórico dessas classificações de natureza regional, geográfica e temática. A arte romanesca de valor para nós é aquela que consegue apreender o substrato estético da vida, identificar o universal no particular, “a partir da sua aldeia”, como dizia Faulkner. Romance agrário, romance urbano, romance regional, romance nordestino, para nós existe o romance brasileiro. Essa epopéia ou saga, como preferem alguns, contando a vida do homem brasileiro, a vida com seus mistérios, na complexidade de sua aventura, de suas lágrimas e dos seus risos.
Cada romance é, portanto, uma forma de renascimento, funde-se ele na cultura popular ou não, sua história se passe na cidade ou no interior, e o que importa mesmo não é tanto o que se conta, mas como se conta.
A ABL completa cem anos no momento de grande glória para o romance brasileiro. Dificilmente, ao longo de nossa história, da história de nossa literatura, vamos encontrar um instante em que tão grandes nomes estão reunidos.
Tivemos a oportunidade de ver, em nossa galeria de nomes, grandes romancistas, mas quero, para sintetizar esta palestra na tarde de hoje, me permitir destacar três desses nomes, que considero emblemáticos, pelo conjunto e pela importância de suas obras. Este é um momento, portanto, solar da literatura brasileira neste instante: Jorge Amado, Rachel de Queiroz e Josué Montello. Poucas vezes o país ou esta Casa vão ter, reunidos, uma trindade como esta. Não se repetirá, porque o Brasil vai mudar, o mundo muda e mudará o mundo que eles criaram, porém não mudará o mundo que eles construíram através de suas grandes obras.
Jorge é um escritor extraordinário, cuja inspiração está nas fontes mais puras do povo, onde ele vai buscar seus tipos, sua linguagem e a sua fabulação. Milhares de personagens, dezenas de livros, dezenas de línguas em que foi traduzido, amado, admirado no mundo inteiro. Ele é uma página definitiva. Nos séculos, a sua obra vai sempre estar presente. Com a sua vastidão e a sua característica, Jorge construiu seus livros e esses livros não desaparecerão, e será eterno aquilo que ele escreveu, como pedaços de seu tempo, de sua paisagem humana, de seus tipos, de seus costumes e de suas emoções.
Josué, a escrever com o cuidado e a sutileza dos clássicos, fecundo autor de mais de cento e vinte livros, cerca de vinte romances retratando grandes afrescos da realidade de sua província, o Maranhão, captando histórias simples e singulares, como O Largo do Carmo, Cais da Sagração. Seu estilo é sóbrio, contido, inconfundível, com o emprego sempre da palavra exata, dominando também o romance psicológico, urbano e realista. Um escritor que marcou e marca o seu tempo, dominando todos os campos da literatura.
Rachel de Queiroz, ela está aqui. É a figura humana, mas, sem dúvida alguma, é uma página definitiva, extraordinária, da literatura brasileira. Rachel, a primeira mulher a ingressar na Academia, que sobressai, emblemática, no romance regional e neo-realista de conteúdo social, de denúncia; em obras-primas como O quinze, João Miguel, Caminho de pedras, As três Marias e, finalmente, O memorial de Maria Moura. Conforme tive oportunidade de escrever, um romancista, quando escreve o primeiro romance, ele fica, realmente, com a sua obra inaugural marcante; Rachel, aos 80 anos, nos dá uma obra-prima, como se fosse um jovem a se inaugurar no romance, que é O memorial de Maria Moura, um monumento da nossa literatura.
Ela é parte dessa trindade, que escolho para dizer que a Academia Brasileira de Letras tem, hoje, não os romancistas do tempo presente, mas figuras definitivas e eternas da história da nossa literatura. São gente de carne e osso, porém são deuses, senhores da memória cultural do Brasil.
Para aliviar um pouco, estou me recordando aqui de quando fui, com familiares, no Museu do Prado. Roseana tinha doze anos; ela entrou, havia o guia do Museu, e perguntou-lhe: “Quem tem nessa sala?” Ele perfilou-se e disse: “Zurbarán, Goya, Velásquez. Algo mais, señorita?”
Pois bem, algo mais?
Uma palavra final, que acho que devemos fazer aqui no centenário da Academia, é uma reflexão sobre o futuro do romance, em face da revolução tecnológica na Comunicação. Discute-se hoje muito sobre o futuro do livro. A história do romance massificado está ligada à história do livro. Se o livro desaparecer, o romance, inevitavelmente, vai desaparecer. Restará somente a linguagem audiovisual para contar histórias? Fixar costumes, invadir o mundo da consciência e criar personagens? A linguagem visual é outra. Tem uma dimensão menor do que a linguagem escrita.
Restará ao romance refugiar-se apenas num nicho da elite intelectual? Muito se discute sobre essa crise do romance no mundo moderno. Em grande parte, ela se tornou introspectiva nessa busca, como se fosse a dissolução de uma consciência fragmentária, de fragmentação da narrativa e mesmo de ausência de personagens. Quase que o romance novo, roman nouveau, uma expressão dessa consciência dilacerada, nos dá uma visão desse tipo a que chegou o romance, até aquele ponto em que, hoje, se diz que a literatura, principalmente, não no nosso Brasil, mas na Europa, se tornou umbiguista – é o termo. A realidade é que o mundo da informação é um mundo extraordinário, as informações que nos chegam são milhões e milhões e passamos a não ter condições de selecioná-las.
No caso da literatura, também acontece a mesma coisa. O que chega é uma multidão inesgotável, e não temos condição nenhuma, nesse volume de informações e no caso do romance, para escolher, saber. E o valor vai se diluindo, e aí nós cedemos essa condição da escolha para o editor, para a mídia, que cria o best-seller. Atualmente - os editores sabem disso, aqui deve haver alguns - se faz um leilão, para dizer: “Vamos lançar, daqui a dois anos, um livro. Fizemos uma pesquisa nos mercados mundiais, e nessa pesquisa foi constatado que o leitor quer sexo, quer aventura, quer isto, quer uma cena disto, quer outra cena daquilo.” Então, encomenda-se um livro, dentro desse parâmetro, e cria-se o best-seller massificado, sem espaço algum, realmente, para que se possa distinguir entre esse livro e a grande criação literária de valor.
Nós, escritores, temos que continuar a desconhecer esse mundo virtual e trabalhar no nosso mundo da criação artística - escrever é uma compulsão - e, sem dúvida, continuar a fazer literatura. Hoje, há uma busca, é necessário que se volte para o romance, como ele veio das fontes populares, das canções de gesta, da tradição oral. Também, hoje, é preciso que a gente possa voltar à oralidade que se perdeu, porque o povo, a grande massa de leitores, sem dúvida, eles continuam a ser leitores, e nós temos que recuperar o fabulário, recuperar a linguagem oral, popular, a construção dessa fabulação das fontes maiores, principalmente num país como o nosso, buscando aquele sentimento dessa alma.
Como eu disse, o romance está ligado à história do livro. Será que o livro vai desaparecer? Há três dias o meu filho me dizia: “Meu pai, estou vindo agora de uma conferência sobre jornal e o jornal vai desaparecer. Vai desaparecer porque já um conferencista fez lá uma exposição sobre a descoberta da tecnologia de uma tela plana, com chips poderosíssimos, na qual entra a televisão, entra livro, entra jornal, entra tudo.” Então eu aconselhei: “Meu filho, mas você tem que aprender, antes, a ler a linguagem de trabalhar com um computador, uma linguagem antecipada, duas linguagens. E eu vou lhe dizer que não acredito que duas coisas desapareçam no mundo: nem o jornal, nem o livro. O jornal, de sua parte, e o livro não desaparecerão.”
A história do livro está ligada à história da memória da humanidade, do homem que quer fixar essa sua memória eterna. Quando ele não tinha onde fazê-lo, começou fixando na pedra – as bibliotecas de pedra de cinco, dez mil anos atrás. Depois, a ligação da própria palavra livro, biblos, ou a ligação da árvore, a película daquelas palmeiras, na qual se procurava escrever. Depois, a argila, em que se procurava também fixar; a tábua, com a cera na qual se escrevia. Moisés levava um livro desses, a sua tábua, quando apresentou os dez mandamentos. Mais tarde, a história do livro liga-se à história dos papiros que, pela primeira vez, facilitaram o manuseio e aumentaram a condição da memória escrita da humanidade. O pergaminho deu condições a ser construído o códice, que é aquela forma atual do livro moderno, até chegarmos ao papel, também uma invenção do Oriente, e quando se diz, hoje, que foi Gutenberg o inventor da imprensa, já se descobriu que, também antes dele, na Coréia, havia impressão com tipos, como tem sido feita atualmente.
Portanto, acho que o livro não desaparecerá. Mas meu filho disse: “Olhe, os avanços tecnológicos superarão o livro.” Eu quero dizer que considero o livro a maior invenção tecnológica do homem, e por isso o livro não acabará. Primeiro, o livro não precisa de energia. Qual a outra descoberta que há nesse sentido? Segundo, o livro é de extrema simplicidade. Pode-se carregá-lo para qualquer lugar. José Mindlin disse uma coisa muito pertinente: “Ninguém leva o computador para a cama, para ficar deitado com o computador em cima.”
O livro é de extrema facilidade, para abrir e fechar. O livro cai e não quebra. O livro não tem limites, na sua capacidade de multimídia – quando se fala de multimídia, que é com quem o livro concorre –, a não ser a capacidade de imaginação dos leitores de livros. Primeiro, nenhuma multimídia tem cinco sentidos. A multimídia tem apenas dois sentidos: visual e auditivo. O livro tem quatro sentidos: o tato, o odor, o sabor e também a parte da visão.
É por isso tudo que considero, numa Casa que tem no livro o material de trabalho, que nós temos esta descoberta tecnológica muito mais avançada, que não desaparecerá jamais, que é o livro. Haverá sempre gente que não irá procurar essas telas. Enquanto existirem livros, sem dúvida, existirá romance, Rachel, gente contando histórias, como os grandes romancistas o fazem, imaginando aventuras, costumes, romances psicológicos, simbolistas, biográficos; pessoas lendo e vivendo, no mundo da imaginação, o drama, a tragédia, a felicidade, o desejo, a desilusão e o amor, que nos mostram todos aqueles que constroem e que escrevem.
Há alguns meses estive em Paris, e fui visitar a biblioteca nova feita pelo Presidente Mitterrand. Fiquei admirando ainda mais aquele homem. Ele fez uma catedral para o livro. São quatro blocos fantásticos, com os quatro ramos do conhecimento humano, uma biblioteca que significa uma homenagem prestada pelo homem ao livro. Então, aquele monumento lá! Entrei numa sala grande, com muitas telas de computador, muita gente sentada, todos batendo, e eu fiquei pasmo: “Meu Deus, essa é a Biblioteca! e essa gente toda na frente do computador? E o livro? (conforme a idéia que todos nós fazemos). Fiquei ali um pouco. Havia alguém na frente do computador, e ele começou a fazer suas pesquisas e a pedir. De repente, olhei: no canto da sala, havia uma correia muito simples, que permeava o prédio todo, descendo, virando, e eu fiquei olhando aquela coisa. Quando vi surgir algo, era um livro que vinha nessa correia, um livro que tinha sido pedido na base do computador. E esse livro foi descendo, descendo, descendo, chegou e caiu na banca. Aí eu olhei. Era A educação sentimental de Flaubert.
Muito obrigado.