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Artigos

  • Cangaço no Leblon

    Começo de tarde ameno, atmosfera quase modorrenta no boteco. Até o pessoal que se posta nas mesas de fora, para melhormente apreciar a graça e o encanto da aplaudida e famosa mulher leblonina — a qual, no dizer inspirado de Dick Primavera, é o sorriso de Deus e o único consolo neste vale de lágrimas — está meio devagar. O desfile parece um pouco fraco, tudo indicando que as moças e senhoras, em vez de ir à praia, preferiram dormir até tarde, para consternação geral. E, no setor de debates sobre a complexa realidade nacional, o ambiente carecia da presença sempre estimulante do comandante Borges, que não apareceu no último domingo, reunido alhures com sua turma da velha guarda, para juntos rememorarem os tempos gloriosos em que desbravavam os ares daqui e d’além-mar, em aviões de todos os tipos e tamanhos. Recordar é viver, devia estar tirando o atrasado e ia faltar novamente.

  • O futuro dos peitos

    Sempre à busca, por profissão e sina, de novidades e maravilhas que lhe possam atrair fregueses e assim garantir seu laborioso e incerto sustento, o escritor, em dias de sorte como hoje, regozija-se por haver achado uma notícia que talvez ainda não tenha chegado à meia dúzia de três ou quatro que o leem. Em si, ela já não causará o impacto que teria há algum tempo, mas enseja alguma meditação sobre o nosso futuro. Trata-se da criação de, digamos, um novo conceito gastronômico, qual seja o de que é bom comer rodeado de garçonetes esvoaçantes, que circulam de patins, usando shorts curtinhos, com os umbigos à mostra até quase lá embaixo e, principalmente, decotes panorâmicos. Se não estiverem servindo às mesas, fazem demonstrações de bambolê e dão cambalhotas em camas elásticas. Apressadamente, o jovem afoito aprovará, mas convém recordar que almoçar dessa forma pode suscitar problemas, pois não são nem um nem dois os casos narrados pelo Brasil afora de mortes pela temida congestão, ocorridas quando o imprudente finado comeu mocotó e foi aos dares e tomares com alguma senhora, ou teve os chamados baixos instintos vigorosamente incitados por visões provocantes.

  • O bom santo São Gonçalinho

    Já passaram, um atrás do outro, o Dia dos Namorados e o dia de Santo Antônio. Não seriam mais assunto para este domingo e cheguei a pensar em escrever sobre a confusão criada pela descoberta (da pólvora) de que o governo americano bisbilhota a internet, com acesso a dados tidos como estritamente pessoais e invioláveis. Mas tratei muito disto aqui e sei que não adianta espernear, porque privacidade é mesmo coisa do passado e, muito em breve, todo mundo será monitorado de várias formas, inclusive em pensamentos antes íntimos. E não somente pelo governo americano, mas por praticamente todos os governos e por diversas entidades particulares. Agora mesmo, acabo de ler que, em Londres, já existem catorze câmeras de segurança e monitoramento para cada habitante. Isso por enquanto, porque o cômputo continua a aumentar e talvez as câmeras venham a ser mais numerosas que as pessoas.

  • Ninguém sabe em que vai dar

    Escrevo antes deste domingo e, portanto, pode haver acontecido alguma coisa, ou muita coisa, que invalide o que penso agora. Mas não creio muito nisto, porque praticamente todos, inclusive comentaristas especializados e experientes, se mostram aturdidos, quase tontos, com as manifestações de protesto por todo o país. Não sou exceção à perplexidade geral e tampouco sei responder às perguntas que se oferecem. Como se iniciaram as manifestações, onde foram concebidas, por que de repente multidões saíram às ruas para reclamar e reivindicar? Que lideranças estarão ocultas, interessa a alguém o que vem sucedendo, beneficia algum grupo? O momento terá sido escolhido ou deflagrou-se um movimento espontâneo, que fugiu do controle de quem quer que o tenha organizado? De agora em diante, fazendo-se um retrospecto, talvez as respostas se esbocem, mas, no momento, elas parecem desconhecidas.

  • Cuidado com Sebastião

    Que dias temos vivido, hein? De monotonia é que não podemos fazer queixa. Continuo achando que ninguém sabe como surgiu e em que vai terminar a confusão das últimas semanas, mesmo depois que o Congresso foi tomado por uma operosidade nunca vista, apressando-se em aprovar medidas antes quase impossíveis. Apareceram palpites em grande variedade, mas nenhum me convenceu muito ainda. Recebo e-mails alarmistas e alarmados, leio artigos e reportagens, ouço comentaristas de televisão e assisto a vídeos na internet, e a profusão de diagnósticos e prognósticos chega a entontecer. Complica-se isto com a circunstância inquietante de que, se levarmos em conta todas as denúncias que não cessam de pipocar, seremos forçados a inferir que não se pode acreditar em nada, até naquilo que testemunhamos pessoalmente, pois o que vemos, ou até o de que participamos, pode não ser mais que a ação de inocentes úteis que não sabem o que fazem, ou uma farsa para ocultar interesses escusos de grupos e organizações daninhas, ou o que lá se queira pensar.

  • A voz do povo

    Logo que as manifestações de rua começaram, Zecamunista, entremeando a fala com alguns suspiros nostálgicos, surpreendeu todos os presentes no Bar de Espanha, ao revelar que não iria a Salvador, tomar parte nos protestos. A cruel verdade era que o vigor combativo de sua juventude já o abandonava e longe, muito longe, iam os dias gloriosos em que, por exemplo, foi preso por ter planejado, comandado e quase concluído com êxito um plano de ação gastrointestinal, para neutralizar a Polícia Militar do Estado da Bahia e assim evitar a repressão de uma das muitas passeatas subversivas em que saía, desde o tempo de Getúlio. Na madrugada antes da passeata, à frente da Guarda Proletária do Alto das Pombas, esteve prestes a despejar, nas caixas d’água dos quartéis, um extrato concentradíssimo de erva-cagona que o finado Vavá Paparrão conseguiu nos matos da Ilha dos Porcos, capaz de levar a vítima a comparecer ao trono de cinco em cinco minutos, não se dedicando a mais nada durante pelo menos um dia ou dois.

  • O fantasma da órfã

    Atribuem ao presidente Kennedy a observação de que a vitória tem muitos pais, mas a derrota é órfã. Melancólica verdade, sobretudo na política, que sempre a confirma sem perdão, bastando ver como as mãos políticas que hoje afagam são as mesmas que ontem apedrejavam e vice-versa. Em nosso caso, temos ainda uma tradição de adesismo por que zelar, bem como a prevalência do Sonho Brasileiro, que é descolar uma mamata vitalícia em algum lugar do governo ou do estado, porque aqui governo e estado são a mesma coisa. Entra um governo novo e declara “o estado é nosso e só faz o que nós queremos”. Isso torna impossível a realização do sonho sem que o sonhador abandone o inditoso derrotado e passe para o lado do futuroso vencedor. Suponho que devemos encarar essas coisas com compreensão e até caridade, pois o pessoal está apenas querendo sobreviver e subir na vida, é natural.

  • Solidariedade na ilha

    Contam os mais antigos que, faz algumas décadas, em Salinas da Margarida, em plena festa da padroeira Nossa Senhora do Carmo, Zecamunista encerrou um comício do Partidão com um discurso incendiário no qual, agitando o punho na direção do céu, xingou o padre e repetiu várias vezes que a religião é o ópio do povo. Acabado o comício e pouco antes de o delegado levá-lo em cana novamente, ele foi muito cumprimentado por cidadãos que se agradaram especialmente dessa parte do ópio, mas, mal ele se recuperava da surpresa, descobriu que o pessoal não sabia o que era ópio e, na maior parte, achava que se tratava de um elogio fino, desses que a gente não entende direito, mas finge que entende, para não passar por iletrado.

  • Nós, os desordeiros

    “É comum que, quando estamos falando mal do Brasil, nos refiramos na terceira pessoa tanto ao país quanto ao seu povo. Dizemos que o brasileiro tem tais ou quais defeitos graves, como se nós não fôssemos brasileiros iguais a quaisquer outros. Em relação aos políticos, agimos quase como se tratasse de marcianos ou de uma espécie diferente da nossa, não de gente aqui nascida e criada, da mesma maneira que nós. Somos observadores e vítimas de fatos com cuja existência não temos nada a ver. Os corruptos são ‘eles’, os que sujam as cidades são ‘eles’, os funcionários relapsos são ‘eles’ – nunca nós.

  • Tudo como sempre

    O Papa voltou para Roma, parece que as grandes manifestações estão rareando e, ao olharmos em torno, acredito que muitos de nós concluiremos que, apesar de alguns artigos pretendendo avaliar eventos dos quais ainda não se tem boa perspectiva e diversos pronunciamentos altissonantes sobre a voz das ruas, nada mudou, pelo menos que dê para notar. No começo, não deixou de ter seu lado divertido, até cômico, o cagaço afobado que se instaurou entre os legisladores, depois de visões alarmantes, como a da multidão de manifestantes encarapitada na cúpula do prédio do Congresso Nacional. Trabalharam febrilmente, professaram com ardor sua dedicação à vontade dos governados e mal dava para reconhecer, em tal pugilo de denodados, os trezentos picaretas anteriormente apontados por um conhecedor da matéria.

  • Formigas na rapadura

    Acho que todo mundo lembra o que disse num discurso o presidente Kennedy: “Não pergunte o que seu país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer por seu país.” Eu estava lendo os jornais e aí me ocorreu, como já deve ter ocorrido a muitos de vocês, que nossa prática política se orienta por uma atitude oposta a essa exortação. Ou seja, queremos saber o que o Brasil pode fazer por nós, mas não alimentamos muita curiosidade sobre o que podemos fazer pelo Brasil. Isso se expressa no comportamento de nossos governantes, que não disputam nada pensando no país, mas em abocanhar ou manter o poder, aqui tão hipertrofiado, abarrotado de privilégios e odiosamente infenso ao controle dos governados.

  • Melhorando sempre

    Como vemos o tempo todo, o Estado, entre nós identificado ilegitimamente com o governo, cada vez mais interfere em nossa vida pessoal. Falta pouco para baixarem regras sobre o que devemos comer em casa (nas cantinas escolares, já baixaram e em breve algum alegre aí vai propor que os restaurantes só sirvam sobremesa se o freguês apresentar certidão negativa de diabetes), fundarem o programa Mesada Mínima para proteger nossos filhos de nossa eventual mesquinharia e instalarem câmeras nos banheiros domésticos, para pilhar possíveis deslizes em nossa higiene, consumo de água excessivo, uso do vaso em padrões anômalos e assim por diante, dessa forma colhendo dados preciosos para melhor nos proteger e aprimorar nossa qualidade de vida.

  • Idosos em ação

    Imperdoavelmente, me esqueci de mencionar aqui a efeméride, mas tento corrigir-me. Semana passada, Zecamunista colheu, nas palavras que ele mesmo usou, mais um cacto no espinhoso canteiro da existência. Não se sabe ao certo que número tem esse cacto e as especulações variam. Segundo Nilzete da Gameleira, que nasceu um pouco depois do marechal Floriano e regula no mínimo com Rodrigues Alves, ele busca ter com ela encontros galantes desde que ela era mocinha, o que ele nega com indignação e diz que ela foi, isso sim, ama de leite dele e, depois de velha, deu para delirar e fazer propaganda do imperialismo ianque. Já Ary de Almiro, seu companheiro em várias ações subversivas, calcula a idade dele pelas vezes em que ele foi preso.

  • Reformas garantidas

    Nossa memória é fraca e nossa atenção é convocada o tempo todo por um volume de informações e solicitações incalculável e cada vez maior. Cumpre-se a conhecida previsão de Andy Warhol, segundo a qual, no futuro, todo mundo será famoso por quinze minutos. O futuro a que ele se referiu já chegou e a profecia pode ser complementada pela constatação de que novos famosos instantâneos pipocam a cada dia e outros tantos submergem no esquecimento, o prazo de validade vence rápido. Portanto, não é impossível que já exista quem já não recorde direito o episódio do deputado presidiário, apesar de sua divulgação maciça. Mas, ainda que atrasado, pretendo falar no assunto.

  • Espionagem e contraespionagem

    Claro, essa discussão toda sobre a espionagem dos americanos faz parte de um ritual incontornável. Exposto a público o problema, ficaria muito chato, se o Brasil não protestasse e não tomasse outras medidas vistosas, sem descambar para a bravata, como, louvavelmente, tem feito até agora. Por seu turno, os americanos também seguem com aplicação a boa prática entre tradicionais e inseparáveis aliados. Emitem documentos e pronunciamentos respeitosos e fazem promessas e esclarecimentos que não esclarecem nada, assim como nossas reações tampouco resolvem nada. É isso mesmo, a gente vive dançando esse tipo de balé ao longo da história da civilização.