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A volta do caderno rabugento

 

Não sei se vocês se lembram de quando lhes falei, acho que no ano passado, num caderninho rabugento que eu mantenho. Aliás, é um caderninho para anotações diversas, mas as únicas que consigo entender algum tempo depois são as rabugentas, pois as outras se convertem em hieróglifos indecifráveis (eu sei que o recomendado é “hieróglifo”, mas sempre achei que quem diz “hieróglifo” está tentando descolar alguma coisa dos dentes), assim que fecho o caderno. Claro, é o reacionarismo próprio da idade, pois, afinal, as línguas são vivas e, se não mudassem, ainda estaríamos falando latim. Mas, por outro lado, se alguém não resistir, a confusão acaba por instalar-se e, tenho certeza, a língua se empobrece, perde recursos expressivos, torna-se cada vez menos precisa.


Quer dizer, isso acho eu, que não sou filólogo nem nada e vivo estudando nas gramáticas, para não passar vexame. Não se trata de impor a norma culta a qualquer custo, até porque, na minha opinião, está correto o enunciado que, observadas as circunstâncias do discurso, comunica com eficácia. Não é necessário seguir receituários abstrusos sobre colocação de pronomes e fazer ginásticas verbais para empregar regras semicabalísticas, que só têm como efeito emperrar o discurso. Mas há regras que nem precisam ser formuladas ou lembradas, porque são parte das exigências de clareza e precisão – e essas deviam ser observadas. Não anoto, nem tenho qualificações para isto, com a finalidade de apontar o “erro de português”, mas a má ou inadequada linguagem.


E devo confessar que fico com medo de que certas práticas deixem de ser modismo e virem novas regras, bem ao gosto dos decorebas. É o que acontece com o, com perdão da má palavra, anacolutismo que grassa entre os falantes brasileiros do português. Vejam bem, nada contra o anacoluto, que tem nome de origem grega e tudo, e pode ser uma figura de sintaxe de uso legítimo. O anacoluto ocorre, se não me trai mais uma vez a vil memória, quando um elemento da oração fica meio pendurado, sem função sintática. Há um anacoluto, por exemplo, na frase “A democracia, ela é a nossa opção”. Para que é esse “ela” aí? Está certo que, para dar ênfase ou ritmo à fala, isso seja feito uma vez ou outra, mas como prática universal é meio enervante. De alguns anos para cá, só se fala assim, basta assistir aos noticiários e programas de entrevistas. Quase nenhum entrevistado consegue enunciar uma frase direta, na terceira pessoa – sujeito, predicado, objeto – sem dobrar esse sujeito anacoluticamente (perdão outra vez). Só se diz “o policiamento, ele tem como objetivo”, “a prevenção da dengue, ela deve começar”, “a criança, ela não pode” e assim por diante. O escritor, ele teme seriamente que daqui a pouco isso, ele vire regra.


E os verbos em “izar”? Não sei se vocês já notaram que há muito tempo, principalmente por escrito, ninguém vê, enxerga, discerne, descortina, ou qualquer outro sinônimo decente. Agora só se visualiza, mais nada e, em Itaparica, ouvi de um menino turista a comunicação, feita ao pai dele, de que estava visualizando de binóculo. “Vender” tem sofrido uma sabotagem inclemente por parte de “comercializar” e não duvido nada que venha a ser banido, assim como foram “pôr” e “botar”. Hoje em dia, o verbo “colocar” perdeu o sentido mais preciso que tinha e substitui os dois outros, inclusive em usos tradicionais. A galinha coloca ovo, dando a impressão, para quem aprendeu o uso mais específico desse verbo, de que a galinha faz a postura (aliás, talvez devesse dizer “colocação”) ajustando cuidadosamente o fiofó num canto do ninho escrupulosamente escolhido. O mesmo tipo de impressão se tem, quando se ouve no noticiário que alguém colocou fogo num barraco. Atear fogo, nem pensar. Virá o dia em que alguém vai colocar pra quebrar. E já ouvi também (ou vi escrito; com esse negócio de internet, não sei mais o que li onde) “ajustabilizar” e “ausentabilizar”, este último, a julgar pelo som, um verbo que haverá de ter lá sua serventia, usado em relação ao Congresso Nacional.


“Prejudicar”, com longa e honrada folha de serviços prestados ao povo brasileiro, também está no caminho célere do ostracismo. Ninguém mais é prejudicado, agora todo mundo é penalizado. Quem estiver pensando em usar a palavra no sentido antigo melhor fará se a substituir por “comiserar”, enquanto esta ainda se encontra disponível, pois, no futuro, “comiserado” poderá ser a designação aplicada por alguma ONG a companheiros de miséria no Terceiro Mundo. “Personalizar”, palavra com mais de cem anos de batente, agora está de aviso prévio e marchará para o esquecimento a que lhe votam os cada vez mais numerosos aficionados de “customizar”. Os verbos em “ionar” também desfrutam de grande voga e um deles, “posicionar”, já mandou “dispor” para o espaço. Nenhum general dispõe mais suas tropas assim ou assado, não mais se dispõem as peças de um jogo de tabuleiro. E se arruma bem menos que no passado. Acho que qualquer técnico de futebol contemporâneo ficaria ofendido, se alguém comentasse que ele arrumou seu time assim ou assado, porque ele posiciona, tudo é posicionado. Da mesma forma que “colocar”, fica, por alguma razão, mais chique.


Finalmente, para não perder o costume, faço mais um réquiem para o finado “cujo”. Tenho a certeza de que, entre os muito jovens, a palavra é desconhecida e não deverá ter mais uso, dentro de talvez uma década. A gente até se acostuma a ouvir falar em espécies em extinção, mas, não sei por que, palavras em extinção me comovem mais, vai ver que é porque vivo delas. E não é consolo imaginar que o cujo e eu vamos nos defuntabilizar juntos.


O Globo, 18/7/2010