Peço desculpas pela repetição de algo que já escrevi aqui diversas vezes, mas acho necessário, porque persiste minha impressão de que o povo brasileiro esquece uma verdade importante. Entre nós vigora a soberania popular, expressa no belo enunciado “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”. Embora a Constituição seja violentada ou ignorada o tempo todo, a manutenção desse princípio é básica e consagra a verdade de que o dono do país é o povo e que todo servidor público, eleito, concursado ou nomeado por compadrio é empregado do povo e lhe deve serviço e satisfações.
Os empregados que compõem o Poder Legislativo estão possivelmente beneficiando o comércio farmacêutico, através de um expressivo aumento na venda de antieméticos. Não há descrição possível para a sensação de que se está televisando um covil de bandidagem, em que mesmo os assuntos que não têm a ver com ilícitos acabam por exibir um ambiente descarado e hipócrita. Entontecido, o cidadão testemunha o bordel de consciências e o cemitério de honradez que se instalou no Congresso. A afirmação “lá só tem bandido safado”, se não é verdadeira, é perfeitamente compreensível, na boca de qualquer brasileiro. Se há exceções, não lhes cabe a carapuça e então não a enverguem, mas eu não vou ficar com essa conversa de “honrosas exceções”. As exceções não têm por que incomodar-se e, se se acham injustiçadas, ajam para que a instituição onde devem representar o povo se respeite.
A expressão “é tudo farinha do mesmo saco”, que a frustrada cartilha da língua que o governo tentou adotar, realmente não deve ser usada. Não por ser insulto aos parlamentares, mas à farinha, alimento às vezes único de milhões de brasileiros. Hesito em substituí-la por “estrume da mesma estrebaria”, pois este tem utilidade e poucos parlamentares podem gabar-se de serem equivalentes humanos a cocô de vaca. Mas serve. Denunciou-se, recentemente, a existência de um acordo secreto que livraria a cara de todo mundo e tenho certeza de que esse acordo não chegará a vingar em sua totalidade não por causa do Congresso, mas por causa da opinião pública. Temos ouvido depoimentos mentirosos que depois se desdizem, temos visto deputados ou senadores esticando seu tempo para exibir-se ao público, temos ouvido um rosário de escroquerias sem precedentes e não é de todo descabido perguntar-se se os traficantes de drogas não são mais éticos em seu comportamento do que parlamentares (ou a “tradição” parlamentar, pois mesmo as más tradições não podem ser descartadas, como se depreendeu da afirmação do presidente, segundo a qual atos ilícitos são prática sistemática na política brasileira).
Chama a atenção também o fato curiosíssimo de que, no PT, ninguém sabia nada do que estava acontecendo. Nenhum episódio desabonador descoberto ou denunciado (mesmo sem provas formais, mas como um “está-na-cara” gritante) era do conhecimento da direção do PT e muito menos de Sua Excelência. Dr. José Dirceu, por exemplo, depois do ato falho exemplar em que se referiu a “meu governo”, não sabia de nada, nunca tinha ouvido falar de nada. E ele faz questão, pois o mundo dá muitas voltas, de não sofrer prejulgamentos, como os que ele praticou no passado. Pequenos erros, que só adquiriram importância agora, quando ele está mais ou menos na linha de tiro.
Quanto a Sua Excelência, esse estava por fora de tudo. Nunca lhe chegou nada aos ouvidos e ele vitupera os fatos denunciados e comprovados como se estivesse criticando um governo e um partido com os quais não tem nada a ver. Nos intervalos de seus bestialógicos, insulta o povo, seja falando grosseiramente, seja chamando jornalistas de covardes e assim por diante. E, crente nas pesquisas sobre popularidade, adota a ridícula teoria de um complô da direita e se fia em que, se for ejetado do cargo legalmente (por golpe de qualquer tipo sou radicalmente contra e viraria defensor dele), voltará nos braços do povo, como houve quem achasse antes e se deu mal. Se ganhasse uma passeata, seria muito. O desenlace, provavelmente, é que seria uma tragédia.
Ou seja, nossos empregados são de baixa qualidade e agem como se fossem nossos patrões. Não são. E, em relação a Sua Excelência (ou Sua Incompetência, como preferem uns), também é preciso dizer que não estamos aqui para sermos insultados. Que vá Sua Excelência esculachar quem devia esculachar, ou seja, os que lhe são subordinados. O povo não lhe é subordinado e saiba ele que, ao esculachar de modo geral, estará sendo esculachado também, como já é, em todo o país. Eu mesmo o faço, na inviolabilidade de minha casa, pelo menos enquanto não vem aí uma medida provisória revogando essa inviolabilidade. Não o faço publicamente por respeito à instituição que ele incorpora e por não querer cometer injúria. Sou cidadão livre, não devo nada a ele, tenho os mesmos direitos, exceto foro privilegiado e puxa-saquismo e, diferentemente dele, cumpro minhas obrigações. Só tenho é que me precatar contra eventuais prejudicados ou fanáticos, pois até a assassinatos ligam o PT, apesar de, como sempre, o PT não saber de nada.
Vocês aí, se já eram tidos como malandros relapsos ou 300 picaretas, no dizer de Sua Excelência, podem ferir mortalmente a democracia. Vão trabalhar e suar a camisa pelo dinheiro que tomam de nós a rodo e querem mais. E a Sua Excelência conto que, a cada xingamento seu, a resposta mínima é “é você” e a máxima é conhecida de todos. Vá trabalhar também, Excelência, e se informe sobre seus subordinados, entre os quais não está o povo. Pare de bazofiar e negue de vez a seus empregadores que conhecia a sujeira que o circunda desde a campanha. Sua obrigação não é viajar e discursar, é governar e prestar contas a quem o elegeu e a quem deve obediência e lealdade.
O Globo (Rio de Janeiro) 07/08/2005