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Vocação de escrever

 

Campos de Carvalho já era um nome nacional quando publicou "O púcaro búlgaro". Seus livros anteriores - "A lua vem da Ásia", "Chuva imóvel" e "Vaca de nariz sutil" - haviam-no colocado em nível de vanguarda em nossa ficção. O tom geral de "O púcaro búlgaro" é o cômico. Sua comicidade não fica, porém, somente em situações externas. Jogo-de-palavras, fá-lo ele a cada instante, e sua variedade estilística se adestra com isto. A partir de dois proparoxítonos - púcaro e búlgaro - vai Campos de Carvalho tecendo sua risibilidade vocabular, acumulando qüiproquós, como os bons humoristas de qualquer tempo e arte, Rabelais ou Chaplin, Marivaux ou Tashlin.


Do verbalismo sobre Campos de Carvalho à comicidade de personagens, à de conteúdos e mesmo a uma espécie de comicidade verbal primitiva, o que fecha o livro num círculo é a expedição para a descoberta da Bulgária num correr atrás de tudo e de nada, num começo que já é fim e numa busca de realização de vida que acaba sendo uma dura e violenta realização de arte literária.


Em "O púcaro búlgaro" atingiu Campos de Carvalho o ponto mais avançado de sua caminhada. Com isto, fincou em nosso chão ficcional a bandeira da insatisfação e da insubmissão, de que, durante algum tempo, Oswald de Andrade fôra entre nós um símbolo. Campos de Carvalho ensina como deve o escritor entender a sua vocação de escrever, para que não faça dela simples meio de acesso social, político ou econômico. Que não a suje na troca diária de gestos e decisões. Só entendendo a literatura tal como um padre poderia entender e sentir sua religião, conseguirá o escritor aproximar-se do plano alto em que a arte da palavra se coloca.


A literatura, tal como a entendeu e realizou Campos de Carvalho, é subordinada ao tempo e anda atrás de valores. O tempo é isto mesmo: hora após hora, dia após dia, domingo e segunda, abril e maio, 2008 e 2009. Século XX. Século XXI.


No meio, porém, do que parece inalterável, coloca o homem os seus valores. São valores de várias espécies. Os do espírito. Os da ação. Os da verdade. Os do instrumento que usa. Os da linguagem que reinventa gente e situações. Os de uma realidade. Ou os da Realidade. Os da concepção que dá força a uma obra. Misturados ou distintos, ordenados ou sem aparente seqüência, os elementos ficcionais da narração de Campos de Carvalho criam um novo tempo.


Durante muitos séculos, a narração de histórias falou de andanças de personagens por terras estranhas. Quando Cervantes queria revelar-nos alguns traços do homem colocava seu Dom Quixote em muitas andanças. Em andanças também viviam personagens de antigamente, Teseu, Páris, Ulisses, Enéias, Hércules. E as mitologias de outros povos (o afro-brasileiro, por exemplo com Oxalá fazendo sua viagem em busca da mulher).


Em viagens pelo mundo, toda uma literatura se criou e manteve séculos de leitores. Voltaire colocou seu Candide em várias partes do mundo, indo do Paraguai, a Constantinopla. Um pouco antes de nosso tempo, Julio Verne e Karl Mey levavam seus personagens a todos os quadrantes da Terra, numa espécie de prova de que o homem sempre tem tido necessidade de abarcar - em aventuras, pesquisas ou desesperos - o mundo em que vive.


Em toda a sua obra - e principalmente em "O púcaro búlgaro" - Campos de Carvalho colocou sua gente em ação, com personagens que se constituem em instrumentos da criação de um grupo necessário de defensores da vida. ________________________________________________________________________


"O púcaro búlgaro", além de várias edições em livro, foi também adaptado para o teatro, tendo obtido êxito em sua apresentação no Rio de Janeiro há pouco mais de um ano. A edição de agora é da José Olympio. Capa de Luciana Mello e Monika Mayer. Orelha de Aderbal Freire Filho.


Tribuna da Imprensa (RJ) 23/09/2008

Tribuna da Imprensa (RJ), 23/09/2008