Poucas vezes pôde a declaração do título acima ser tão bem aplicado como no julgamento do romance de José Nêumanne, "O silêncio do delator". Lendo-o, somos obrigados a reconhecer que a força da ficção é capaz de fixar para sempre uma realidade veemente do tempo.
Quem leu "A cartucha de Parma" e acompanhou o personagem Fabrício, criado por Stendhal, em sua caminhada pelo território mesmo em que acontecia/acontecera a batalha de Waterloo, compreenderá de que maneira consegue a ficção ir além da verdade e iluminar o registro puro da pesquisa histórica. Nenhum levantamento do que fora realmente Waterloo ultrapassara a simplicidade com que o personagem fictício depara de repente com Napoleão derrotado na talvez surpresa de ver que seu império chegava ao fim.
Assim aparecem os acontecimentos brasileiros das últimas décadas no romance de José Nêumanne. Romance? A palavra se aplica no caso porque existe uma relação entre a história de um povo e a ficção desse mesmo povo. Sob este aspecto, mostra-se o romancista como autor de uma reafirmação, uma confirmação (até ao sentido litúrgico do termo) de um tempo vivido.
É assim que percebo, na mais íntima e científica accepçao do verbo "perceber", os enredos que os melhores romancistas brasileiros de hoje arrancam do tempo real para com eles retratar o país e sua gente. Como compreender a Inglaterra do século XVIII sem a leitura de "Tom Jones"? Ou a Rússia do século XIX sem a obra de Dostoievsky? Ou a França de Louis Philippe sem a "Comédia humana" de Balzac? Ou a Terceira República sem Proust? Como entender qualquer realidade sem a sua correspondente ficção?
R. S. Crane, Richard McKreon e outros defensores do "criticismo" anglo-americano costumavam dividir o exame de um romance - ou de qualquer obra "imitada", isto é, qualquer produto de arte que procure representar uma realidade, imitá-la, transformá-la - em três partes fases: em primeiro, que vem a ser a coisa "imitada"; em segundo, a linguagem em que a "imitação" aparece; em terceiro, a técnica da "imitação" e a técnica da linguagem.
Em "O silêncio do delator" tudo acontece num velório. É um morto quem fala, numa análise de estilo contundente, sobre os anos 60 do século passado, quando surgiam ímpetos de mudança na poesia, no romance, na moral de cada um, na música e no sexo (baseado na frase: "Desde o Gênesis, qualquer texto tem de ter um casal"), nos desencontros ("João Miguel que amava Helena que amava Marlon que amava Lia que não amava ninguém").
O "tempo" da narrativa de "O silêncio do delator" (tempo-duração) aparece no romance de forma renovada. Nele o contraponto literário chega um nível de excelência ao recolher os acontecimentos e as figuras que, ao longo dos últimos 40 anos, abriram caminhos e tentaram impor ordem a uma desordem.
As palavras, as frases, os elementos de ligação - usa-os José Nêumanne como propriedades particulares. O velório se estende, largamente livre, erguendo retratos de um tempo real de um tempo lateral e possível, exibindo o País em seus mistérios, unindo Jorge Amado e Cuíca de Santo Amaro a Bob Dylan e Vinícius de Morais, os Beates e Nelson Rodrigues a W.B. Yeats. A todos eles, personagens e gente de verdade, o romancista imagina como dizendo: "Gastamos o mar."
Para José Nêumanne, a ficção é uma verdade, e dela vem. Uma verdade oposta ao convencionalismo das verdades estabelecidas, ao proteger o homem contra a nudez das novidades e a solidão dos avanços, pode nele matar a inteligência da realidade, a alegria da experiência e o sentido da dignidade essencial do ser humano. Essa verdade, íntima e jovem, que a ficção contém, é a matéria, a um tempo dura e maleável (e durável), sobre o foco narrativo de Nêumanne dirige sua atenção.
Como forma de expressão de nossa modernidade, apresenta-se o romance "O silêncio do delator" como um criador de símbolos que passam a ser os nossos, de ser os nossos, de vez em quando ingressando no terreno do poema e oscilando entre a lógica e um místico exame de consciência. A simples idéia de um velório, colocado em palavras ao longo de 541 páginas, revela a força de um narrador que vem alargar a dimensão do romance brasileiro neste novo milênio.
José Nêumanne pode ajudar numa reação à literatura ligada a um excesso de tecnicismo, ao artífice vazio, à desconversa e à literatice; em favor do conteúdo inconsútil com a boa técnica, do significativo posto em linguagem nova e da palavra usada como instrumento de busca da verdade de um tempo.
"O silêncio do delator", de José Nêumann, lançamento da editora "A Girafa". diagramação de Alessandro Mussato, capa de Newton César, acaba de conquistar o Prêmio Senador José Ermírio de Moraes da Academia Brasileira de Letras.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 19/07/2005