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Variações sobre a justiça

 

Pode parecer estranho que, após mais de sete décadas de convivência com a problemática jurídica, procurando alcançar seus fundamentos, eu ainda sinta necessidade de tecer considerações gerais sobre a justiça. Nada, no entanto, me parece tão criticável como, logo no início dos estudos jurídicos, pretender-se expor a própria teoria da justiça, às vezes após longa exposição das principais doutrinas sobre o assunto, desde Platão e Aristóteles até os mais celebrados autores contemporâneos.


Tal atitude revela o desconhecimento da "verdade das verdades da ciência", que consiste na natureza infindável desta, na provisoriedade daquilo que se sabe, até o ponto de Karl Popper poder asseverar que o científico é sempre refutável, o que não significa que não haja juízos evidentes ou essencialmente valiosos.


É que, nem bem se atinge o que supomos seja "a verdade", surgem novos problemas, impensadas indagações que reclamam a continuidade da pesquisa, novos estudos e experiências.


Se assim é nos domínios das ciências em geral, desde a mais abstrata afirmação da Matemática até a mais concreta e elementar conquista de ordem prática, que dizer dos conhecimentos vinculados com a existência mesma do ser humano, a seu "poder-destino" de saber e comunicar?


É o que parece ocorrer desde o surgimento do homem sobre a face da Terra, desde que ele transformou o multissecular e animalesco grito selvagem na fala, na palavra com que expressava suas infinitas intenções, suas necessidades existenciais, do inesgotável mundo dos utensílios até seus grifos artísticos nas cavernas primitivas.


É por tais razões que, em minhas últimas indagações filosóficas, me tenho referido ao "a priori cultural", como condição primeira do conhecimento, não me contentando com a dominante afirmação de que o ser humano é "um ser histórico": antes de ser histórico, é um ser cultural, quando este começa a adquirir consciência de si mesmo, e a palavra se converte em signo da linguagem, fruto mnemônico primordial que se confunde com a ciência mesma.


Nessa ordem de idéias, é natural que nunca nos satisfaça a última visão da justiça, a que não mais corresponde aos horizontes e às exigências de uma época que não se está mais vivendo.


Se a justiça, como escrevi em 1953, ao redigir a última página de meu curso de Filosofia do Direito, é "a constante coordenação racional das relações intersubjetivas, para que cada homem possa realizar, livremente, seus valores potenciais visando a atingir a plenitude de seu ser pessoal, em sintonia com o da coletividade", a conclusão implícita dessa antiga afirmação é a de que "cada tempo histórico tem o seu conceito de justiça".


Isso não quer dizer que a nossa noção de justiça surja de repente, lançando raízes tão-somente nos derradeiros acontecimentos históricos, pois jamais nos livramos de nosso passado, no qual já se achava em germe o nosso presente, muito embora condicionado por aquilo que "ex novo" se lhe acrescentou de maneira imprevisível.


No fundo, a história da justiça é a história de nossas carências, daquilo que falta ao indivíduo e à coletividade para que ambos se realizem na plenitude de seus valores éticos e existenciais. No âmago da idéia de justiça há sempre um sentimento de carência, tudo dependendo de ter-se ou não ciência dela.


Não é de hoje, por exemplo, que a humanidade se divide tragicamente entre uma minoria que tudo tem, sem necessidade de distinguir entre o necessário e o dispensável, e uma maioria que chega a sofrer sede e fome. Foi somente na época contemporânea que se passou a ter consciência universal dessa aterradora situação, podendo-se dizer que somente então se começou a contar "o tempo da justiça existencial".


Esse tempo somente será efetivamente vivido quando reinar a "caridade existencial", a que me referi em meu último artigo, Variações sobre a caridade, de 20 de novembro último, neste mesmo jornal (A2), quando, em suma, os donos da Economia e das Finanças inserirem em seus orçamentos de despesas o "quantum" indispensável a que não existam mais sede e fome em nosso mísero planeta.


 


O Estado S. Paulo (São Paulo) 04/12/2004

O Estado S. Paulo (São Paulo), 04/12/2004