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A União Européia a perigo

 

Não mais do que de repente eis o grande propósito da União Européia a risco do plebiscito de sua Constituição. Um "não" majoritário não acarretaria necessariamente a quebra do conseguido até agora. Mas, sem dúvida, um possível revisionismo das medidas à frente, contidas na Carta Magna, e dispostas a transformar uma estrita união de estados no avanço de uma efetiva cidadania européia. Ficaria este progresso crucial exposto às revivescências das velhas soberanias nacionais. Os países do Benelux deram a partida, na consagração indiscutível, pelas suas populações, do marco adiante que representa o verdadeiro pacto federal proposto. E, no mesmo passo, segue-se a Espanha, onde o Governo socialista de Zapatero ganhou, hoje, a nitidez de uma busca real de alternativa ao eixo liberal que parecia o tônus do primeiro lustro do velho continente neste século. O núcleo, entretanto, de toda a solidez do projeto continua o eixo Berlim-Paris e, de mais a mais, o "não" surge inesperadamente como a tônica do plebiscito francês do dia 29 de maio.


Começa, talvez tardiamente a mobilização maciça para sobrepor à campanha de Chirac o esforço de Schroeder a salvar a convergência da matriz mesma da idéia européia. As próximas semanas deverão também marcar a possível manutenção da Inglaterra na periferia desses acordos, de par com a Suécia. Foi já no governo Blair que Londres refreou o passo adiante da unidade da moeda, justamente com Estocolmo. E o desbote da figura do trabalhista, não obstante ganhe o seu partido, não melhora os prognósticos quanto a uma Inglaterra que, de fato e de vez, desenlace-se desta aliança preferencial com Washington, enfatizada a partir do 11 de setembro.


À margem do plebiscito só se prefigura o enfraquecimento na mudança do núcleo básico do 16, para o universo dos 25 que incorporaram já tantas repúblicas do Centro e Leste europeu, subordinados à hegemonia americana. A partir da Polônia e da Hungria, da Eslovênia ou da Eslováquia, amplia-se diretamente a influência americana, em contrapartida ao fortalecimento da idéia federativa européia. É como se um velho vezo do satelitismo mudasse de direção, e as antigas periferias soviéticas trocassem o pêndulo da sua última afiliação internacional. É o que só se reforçará, no segundo lance destas incorporações; com a Bulgária, a Rumania ou a Ucrânia e descaracterizar, em termos de convivência internacional, o governo de Bruxelas e Estrasburgo, a fazer da Carta a sua alavanca.


No mundo ameaçado pelas hegemonias uma verdadeira cultura da paz emergente não decorrerá da velha e cansada reformulação de um mero equilíbrio de poder, ou de um balanço de soberanias. A União Européia pretende ser mais do que um clube de estados, consciente de que é só por uma direta mobilização-cidadã que, de fato, se poderá sair da "civilização do medo".


Na verdade, diante do espírito de cruzada do Salão Oval, um efetivo estado de paz mundial dependerá mais do que das eleições formais dos regimes, de uma prática de avanço dos direitos humanos, de voz emprestada às minorias, de reconhecimento das diferenças étnicas tantas vezes sofreadas pelo recorte e pelas fronteiras das soberanias nacionais. Nem por outra razão um freio temporário ao alargamento de uma visão meramente continental da Europa, a envolver a Turquia, exige o cumprimento prévio destes vestibulares da cidadania. E o Governo de Ancara no bloco europeu já se comprometeu a reformular a questão dos curdos no seu seio. Só se reforça hoje a importância desse acréscimo, enquanto implicará na agregação do país mais populoso dentro da nova União, de par com o teor de laicismo em que a República de Ataturk trouxe o Islão à modernidade.


É nessa instância, e não da Shariah, que a Turquia argui da sua plataforma de direitos humanos e da visão de uma história comum e da mesma modernidade européia, repartida entre o seu extremo ocidental e o mundo balcânico, vivido até o século XX, praticamente, sob o Império Otomano. É este eixo que se recupera na idéia maior, em que o outro bloco do Primeiro Mundo envolve o Mediterrâneo e a segunda Roma, de Constantinopla e de Istambul.


A Constituição que se ora plebiscita esmerou-se nas providências para desligar a nova aliança de qualquer determinação cultural ou religiosa redutoras. Foram contundentes quando da eliminação de toda invocação cristã do preâmbulo. Coincidia a medida inclusive, com o Relatório Hallstein de 97, que exatamente abria as portas à entrada de Ancara e reconhecia o clã de integração turca, em radical renovação por uma "consciência européia".


Significativamente também sobe ao pontificado a voz na Igreja nitidamente contra este ingresso, a do então cardeal Ratzinger, em nome da invocação nostálgica da Europa das cristandades. E é exatamente o ingresso da Turquia na União que se reclama na expressão de um pluralismo de culturas, capaz de se opor a prazo médio e longo, à gravidade da radicalização, inclusive religiosa, do republicanismo americano, fortalecido nas urnas dentro de um messianismo tão hegemônico quanto pretendidamente cristão.


Uma Europa de depois do plebiscito corre o risco da gravidade deste retrocesso, na criação de um mundo, de uma mesma cidadania ativa, para além do mero protagonismo das nações. Não é outro talvez o caminho pelo qual se possa, na prática das raízes da mobilização social, encontrar a solução efetiva para o terrorismo e o restabelecimento da "cultura da paz". Cruza-se, ou não, nas próximas semanas este meridiano entre o passo à frente fundador e o regresso melancólico do Governo de Bruxelas à irrelevância vertiginosa diante da hegemonia do Salão Oval? Um universo multicultural é a primeira exigência para que se entenda como a outra banda do Primeiro Mundo transformou-se no reduto da diferença. Não quer se render à "civilização do medo" nem as guerras de cem anos, do terrorismo sem quartel.


 


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 06/05/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 06/05/2005