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Uma tragédia brasileira

 

Reportagem, romance, poema, com páginas que misturam homens, objetos, animais, impulsos, máquinas, crueldades, loucuras, sexo desabrido, num completo rompimento de qualquer normalidade que possa dar segurança ao simples existir no dia-a-dia. - esta é talvez a única maneira de se resumir este livro de Márcio Souza sobre a construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré.


Gente de várias partes do mundo, bandeiras do Brasil, dos Estados Unidos e da Bolívia, hasteadas e baixadas conforme as circunstâncias, no meio de tudo milhares de escorpiões e de insetos desconhecidos, moscas de todos os tipos, a malária matando à direita e à esquerda, o pensamento despido de todos os seus enfeites, nu diante da paisagem. - eis uma síntese do que foi esta tragédia brasileira.


Nas épocas de grande turbação é que aparece o Apocalipse. As experiências imediatas ultrapassam a possível capacidade real de cada personagem da história raciocinar diante da realidade. "Mad Maria" é uma obra apocalíptica. Sua força é a da própria floresta que domina a história e que se transfigura na técnica literária - viva e participante - de Márcio Souza. Quase que se surpreende, a cada página do livro, o fenômeno da criação. É como se o ruído da planta germinando, no fundo da terra, conseguisse fazer-se ouvir.


Um ruído primitivo e límpido que o homem, viciado por novas formas de barulho, não mais pudesse distinguir. Quando a realidade - não a do livro, mas a histórica - parece impor sua presença no romance, nele surgem palavras estranhas, vindas talvez de um mundo incriado. O Apocalipse é mesmo assim. Distingue-se principalmente por um grito de alerta que pode existir nos próprios ruídos naturais da mata. Os símbolos também são naturais ao Apocalipse. Mas símbolos próximos, constituídos de matéria.


Ao longo da história que o livro conta, os alemães impõem sua kultur em ciclo de trabalho de pessoas mais primitivas e, no fim, vê-se que são todos igualmente primitivos, escravos da locomotiva Mad Maria, que de vez em quando apresenta um problema, como o da caldeira, que deixava de funcionar por motivos desconhecidos ou porque um bicho qualquer dos trópicos havia entrado na caldeira, símbolo de uma tecnologia, e ali fizera um ninho que parava a máquina.


Tudo se mistura na grande luta para levar um trem de Madeira a Mamoré. Misturam-se as raças, os idiomas, os hábitos alimentares, misturam-se as religiões. A dos índios, a dos negros, a dos indianos, as muitas religiões dos brancos, de que a descrição, feita pelo romancista, do personagem chamado Farquhar, que tratava dos assuntos da ferrovia protegido por seu Deus, com quem falava normalmente. Explica o romancista: "...Deus era o grande auditor de Farquhar, o homem de negócios. Ainda era um quacre porque podia sentir na vibração de suas vozes interiores, a todo momento, o tremor da palavra divina." De acordo com sua religião, todos os dias eram santificados.


Na construção da ferrovia os empregados negros matavam, quando queriam levar os mortos do grupo para enterramento longe deles. Morto era sagrado e só podia ficar sob a proteção de parentes e amigos do grupo. Os trabalhadores diziam: "A gente morre de calor, morre afogado na lama. E, se escapa, tem diarréia, tem malária."


"Mad Maria", além, de fixar o que foi a tragédia real da Madeira-Mamoré, faz lembrar o maior de nossos problemas, a que não temos dado a necessária importância: a do abandono em que deixamos a região amazônica. Desde o livro pioneiro de Tavares Bastos, "O vale do Amazonas", de 1866, que sabemos dos problemas básicos da região.


Euclides da Cunha, em seguida, nos chamaria a atenção para o assunto. Quando de sua viagem histórica pela Amazônia, escreveu em carta a um amigo: "...nada te direi da terra e da gente. Depois, aí, e num livro, "Um paraíso perdido", onde procurarei vingar a Hiléia maravilhosa de todas as brutalidades que a maculam desde o Século XVIII." Euclides não escreveria o livro, seria morto antes. Tento imaginar o que teria escrito Euclides sobre o Amazonas e que Antonio Conselheiro poderia surpreender sob a verde nave de suas árvores.


E não é difícil que imaginemos o problema bem maior que teremos quando a cobiça internacional fechar o cerco sobre a nossa Amazônia. O romance de Márcio Souza, por nos colocar dentro do ambiente internacional ligado a uma ferrovia, pode forçar a memória brasileira a buscar um meio imediato de levar o Brasil a cuidar, com determinação e eficiência, de uma terra e de um povo que são visceralmente nossos.


Em muito boa hora lançou a Record Editora uma nova edição do romance de Márcio Souza, "Mad Maria", que vem a ser a 17ª do livro e a 2ª da própria Record.


Recomendo vivamente a leitura deste trágico levantamento contido numa das mais violentas narrativas que já se escreveram sobre um acontecimento muito falado, mas não muito conhecido de nossa história. Capa original e projeto gráfico de Evelyn Grumach.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 15/02/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 15/02/2005