No movimento natural de uma literatura, atividade subordinada ao tempo como tudo o mais, temos de vez em quando a necessidade real de rever livros e reavaliar tendências. Romances da segunda metade do século passado, quando se exigia que as mudanças fossem claramente identificadas, precisam ser reeditados a fim de que os julgamentos de então passem também por nova análise.
Em conferências que fiz no exterior, sobre as ligações de nossa ficção com realidades geográficas, procurei chamar a atenção - o que era uma tradição de nossa crítica literária a partir dos anos 30 do século XX - para a importância de produtos da terra nos romances brasileiros de então.
O cacau e a cana-de-açúcar, presentes em Jorge Amado e José Lins do Rego, eram os mais evidentes. O fato de o café não haver produzido um grande romance parecia ter sua justificativa numa realidade: a de que sua superprodução se dera com trabalhadores chegados de fora, mais principalmente italianos e japoneses que só em segunda ou terceira geração produziriam escritores da língua portuguesa.
Dentre os romances de então, que mostram aspectos da vida em região cafeeira, destaco os de Macedo Miranda cuja obra está à espera de uma necessária reedição. Principalmente "O Deus faminto", em que o romancista inventou vários narradores para estruturar sua tragédia, criando, assim, uma estranha multiplicidade de pontos de vista que nos dá uma visão que não está longe da técnica faulkneriana de fazer romance.
A ficção de Macedo Miranda surgiu como representante literário do Rio Paraíba fluminense. Em "O Deus faminto", sua narrativa corre com extraordinária fluência e a nitidez de contornos dos personagens que narram a história (são sete) dá força ao retrato de um tempo e sua gente que narrador exaustivamente levanta.
Pergunto-me se Macedo Miranda foi realista ou se pertenceu mais à família dos puros fabuladores. Essas classificações nem sempre são importantes, embora nos ajudem a aclarar trechos de uma obra. O realismo psicológico de que o "nouveau roman" de então extraiu sua força, estava de acordo com o espírito de dissociação daquele tempo, dissociação necessária (ao do átomo, a da sociedade, a do pensamento, a da emoção, a da percepção, a psciológica) necessária até para a renovação que inevitavelmente provocava.
Daí, inclusive, o dissociativismo de uma ficção, a necessidade de muitos ângulos, a insistência na "intuição do instante" de Bachelard, o desejo do não compromisso com o que já passara (cada um queira dissociar-se do passado), a busca da análise sartriana, da disponibilidade gideana. Como sempre acontece, surgiu depois de um repúdio à disponibilidade e mesmo o começo de uma tendência para o misticismo.
No romance em que Macedo Miranda realmente deixou seu nome na literatura brasileira, "O Deus faminto", havia um fundo de pessimismo que permeava a narrativa, a que o romancista acrescentava recursos de um realismo psicológico através do qual os personagens se desnudavam. Porque a verdade é que eles se desnudam ao longo do romance, cada um se mostrando como é ou como pensa que é. Como em todo bom romancista, a estrutura é, na sua obra, ao mesmo tempo sólida e leve.
Macedo Miranda conhece os personagens de seus romances, como se deles fosse dono. Quando Aristóteles falou de narrativa, disse: "Toda felicidade e miséria humanas tomam a forma de ação". Embora se referisse mais ao drama grego - e à poesia narrativa da época, o sentido de sua frase é válido também para o romance de hoje.
Macedo Miranda é dono de seus personagens, preside cada momento de um enredo normal passado no Vale do Paraíba fluminense, levando sua gente a esta ou aquela posição e conquistando, com isto, a verdade da ação. Ou a verdade da ficção.
Neste novo milênio, em que surgem mudanças tanto no pensar e fazer literatura como no viver o simples dia-a-dia de quem pensa e faz literatura, a obra de Macedo Miranda precisa ser reeditada. Elo entre o final do fausto do café e as indecisões de agora, pode levar-nos a compreender nosso País (que para isso existem os escritores) e a que nele possamos perceber a força de um realismo antes de tudo humanístico.
Sugiro que seja reeditado o romance "O Deus faminto", de Macedo Miranda, que nos deixou em plena segunda metade do século passado. A edição de então foi da Civilização Brasileira, com orelha de Edson Carneiro e capa de Marius Lauritzen Bern.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 28/06/2005