Cada um de nós, quando escreve, tem naturalmente o seu próprio estilo. O estilo é o homem, dizia o escritor francês Buffon (1707-1788). Para o crítico literário Wilson Martins, dos mais respeitados em nosso país, “Euclides da Cunha é um nome sagrado, mestre dos mestres.”
A propósito do centenário da sua morte, a Academia Brasileira de Letras programou uma série de homenagens. Fizemos uma pesquisa sobre a rica terminologia utilizada pelo autor de “Os Sertões”, livro escrito em 1902 para retratar a imagem de uma raça sofrida, feita por um homem de sangue caboclo, uma voz nacional, plantada no centro da cultura brasileira, como gosta de afirmar o escritor José Louzeiro, para quem o livro descreve a terra e a gente sertaneja, dentro da realidade histórica e social do Brasil, dando-lhe uma visão nova, numa obra que mistura ensaio, história, ciências, filosofia, drama e lirismo. Aliás, uma bela mistura.
Para os iniciados em Euclides da Cunha, sempre é bom ler a sua obra-prima com um dicionário ao lado. Para que não se perca a riqueza do uso adequado de cada palavra. “A terra sobranceia o oceano” é uma expressão logo do início que se refere à altura das escarpas. Cita o gongorismo, que é uma escola literária nascida na Espanha, e depois alcança o curvetear, que é sinônimo de corcovear.
Há os aguaceiros fortes sobre os desertos recrestados (requeimados), aprende-se que exsicado é sinônimo de ressequido e uma frase representa bem a forma de comunicação do escritor fluminense: “Ajusta-se sobre os sertões o cautério das secas; esterilizam-se os ares urentes... alimenta-se das reservas que armazena nas quadras remansadas.” Ou seja, cautério é secar bem, urente é o que queima e remansada é tranquila, sossegada.
O empardecer de uma tarde é o escurecer, que faz sentido, e relâmpagos precípites são velozes, enquanto rebojos são redemoinhos, na descrição enriquecida por uma série de citações científicas, de que o engenheiro era pródigo. As luras dos fragueados são tocas dos rochedos. A uberdade da terra é a sua fertilidade, fartura, riqueza, e logo se chega à frase lapidar do livro: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte.” A seguir, fala nas lendas arrepiadoras do caapora travesso e maldoso, palavra herdada do tupi e que significa habitante do mato.
Considera que falta ao sertanejo uma plástica invejável, afirma que sua religião é, como ele, mestiça e encontra crianças à procura de flagícios, ou seja, ações criminosas. Chega a Antonio Conselheiro, para considerá-lo um gnóstico bronco (herege). Era o profeta, o emissário das alturas, transfigurado por ilapso estupendo, traduzindo, a influência de Deus nas almas das pessoas, segundo os crentes.
Farândula de vencidos da vida é referência a um bando de maltrapilhos. As beatas retransidas de susto quer dizer tolhidas e há tempo para saber que filolatria é culto às plantas. As homilias são pregações e côngrua é uma ajuda monetária aos párocos. Camândulas são contas grossas de rosários, matula é a multidão de vadios, atrium é a palavra latina que significa vestíbulo e iço é uma erva daninha. Para concluir com gilvazes, que são cicatrizes. Uma importante aprendizagem linguística. Vale a pena ler o livro.
Jornal do Commercio (RJ), 21/8/2009