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Um malandro especial

 

Na linguagem popular, registrada pelos nossos melhores dicionários, como o Aurélio, o Antenor Nascentes e o Koogan-Houaiss, malandro é um indivíduo que não trabalha, vive de expedientes, que pode ser também vadio, matreiro, finório. A despeito disso tudo, aprendemos a respeitar a figura de Moreira da Silva, sucesso como cantor e homem de rádio há tantos anos.

Sempre que se apresentava, era lembrada sua condição de malandro, o que aliás, contrariava o trabalho que fazia, na defesa da música popular brasileira. Ele foi, indiscutivelmente, um dos grandes nomes da MPB, mas ficou com a fama com que era tratado. A malandrice fazia parte de sua personalidade.


Um dia, já aos 98 anos, Moreira da Silva caiu doente. E grave. Sem dinheiro, foi internado na UTI de uma casa de saúde, onde ficou por alguns dias. A conta cresceu, chegando a passar de R$ 30 mil. Preocupado com a dívida, ao contrário do que faria um bom malandro, na véspera da morte, apertou a mão do marido Ricardo Cravo Albim e fez-lhe o apelo final, já com voz enfraquecida:


- Não deixe que eu morra, devendo essa grana. Não poderia ser mais sintomática a demonstração do seu caráter. Estava morrendo, poderia ter chutado a dívida para o alto, daria uma de esperto, mas o que prevaleceu foi a sua boa formação, apesar da origem humilde.


Malandro, sim, mas vigarista jamais. Assim, percorreu a sua trajetória, com o jeito malemolente e as centenas de canções que expressaram o embalo próprio de um ritmo bem característico do Rio de Janeiro. Foi o criador do samba de breque.


Ansiedade - Na cerimônia em que o grande Martinho da Vila fez a doação de 200 livros do Projeto Kizomba para a Secretaria Estadual de Educação, a fim de enriquecer a iniciativa escolar da “Hora da Leitura”, essa história veio à baila. Ricardo Cravo Albim, ao lado de Martinho, de Noca e de Haroldo Costa, todos figuras luminares do samba, contou, muito emocionado, o que havia se passado poucos dias antes, quando testemunhara a ansiedade de Moreira da Silva, pelo cumprimento de suas obrigações. Ali mesmo, na casa de saúde, prometera ao amigo que não permitiria que a dívida manchasse a sua imagem.


Quando Moreira encantou-se, Ricardo, sabendo que com o governo não se conta, abriu um livro de ouro, procurou saber de outras dívidas do cantor símbolo, e recolheu recursos para honrar todos os seus compromissos. Contava isso com os olhos marejados, fazendo a questão de dizer que o primeiro a aderir, com uma boa importância, foi o nosso insuperável Chico Buarque de Holanda, e depois os artistas que participaram do show do Canecão.


Há quem afirme que não há muita solidariedade no meio artístico, mas não parece verdadeira a afirmação. A boêmia pode perfeitamente conviver com a solidariedade. Numa próxima edição dos dicionários, o verbete malandro precisa acrescentar algo que expresse o que esse fato representa. Questão de justiça.


Jornal do Commercio (RJ) 11/7/2000