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Um jogo sem regra

 

Nas novelas, os maus são sempre desmascarados e punidos para dar lugar a um final feliz. Na vida real, isso é mais difícil de acontecer.

Num dia qualquer, saio do “Jornal Nacional” e caio na “Regra do jogo”, e aí começa a confusão. É como se personagens reais tivessem se transferido para a novela, com outros nomes e vários disfarces. Na trama de João Emanuel Carneiro, ninguém presta, ou quase ninguém; ou é mau caráter ou vai ser no capítulo seguinte, e os bandidos têm cara de mocinhos, não sendo o que parecem, e sim piores. Claro que há diferenças nessa imitação que a realidade parece fazer da ficção. O “pai”, ou “coisa ruim” da organização criminosa, por exemplo, ainda não se revelou, embora se desconfie de quem seja, enquanto na história que se passa em Brasília o rico e esperto vilão não faz questão de se esconder, e mesmo assim consegue enganar um lado e o outro, correligionários e desafetos, comandando direta ou indiretamente as más ações para salvar a própria pele. Se o autor quisesse criar no seu folhetim um núcleo político, poderia incluir algumas cenas desse festival de vilania e hipocrisia que se passa na capital. A personagem que representar a presidente deve fingir confiar integralmente no seu vice, e os dois farão publicamente juras de lealdade mútua, até que uma carta “pessoal” (lida pelo país todo) revela o ressentimento de um rejeitado que, com suas queixas, quer justificar a separação — ou a traição. É uma mágoa acumulada durante quase seis anos de convivência que resolve extravasar justamente no momento em que a mosca azul da sucessão pousou na cabeça desse autodenominado vice “decorativo”.

Merece destaque também a excitação dos tucanos com a perspectiva fácil de chegar ao poder sem fazer força. Eles se dispuseram a apoiar um eventual governo do vice mesmo antes de se saber se haverá ou não o impedimento da presidente. Já tem oposicionista se oferecendo até para participar de um hipotético governo. É de imaginar a decepção deles se, antes, o TSE decidir cassar a chapa completa, com vice e tudo.

Nas novelas, os maus são sempre desmascarados e punidos para dar lugar a um final feliz. Na vida real, isso é mais difícil de acontecer. Mas como o país está mudando, e há uma tentativa de restauração da moralidade pública, resta sempre a esperança de que a Lava-Jato vai limpar as regras do jogo político.

Gostaria de ter feito a Marília Pêra a homenagem-desagravo que lhe dedicou Ancelmo Gois anteontem. Como escreveu Sandra, “só lamento minha irmã não ter conseguido viver para ler esta nota de hoje! Sinto que de alguma maneira ela agradece!” Marília, que foi muito patrulhada, deixou como antídoto aos tempos de cólera como agora a recomendação: “Não perca seus amigos por causa de diferenças ideológicas que talvez sejam temporárias. Não brigue. Não vamos brigar”.

O Globo, 09/12/2015