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Um cantor lembra outro

 

Acontece com todo mundo. Ao escutar um disco de um cantor este lembra outro, como se um tivesse saído do outro ou vice-versa. Nenhum desdouro nisso, e não há por que renegar uma influência ou descendência ilustre. Veja bem, a semelhança não tem a ver com o gênero de música que eles cantam, mas com certo jeito de cantar ou uma sonoridade em comum. É possível que essa influência tenha sido inconsciente. E, claro, pode ser também apenas uma ilusão auditiva do ouvinte.

Quando ouço Elis Regina, lembro-me de Angela Maria, que, por sua vez, me lembra Dalva de Oliveira. Quando ouço João Gilberto, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Roberto Silva, Lucio Alves, Gilberto Alves e Cyro Monteiro, lembro-me de Orlando Silva —o de 1935-1942, na RCA, talvez o melhor cantor do mundo naquele tempo. Anitta, Ivete Sangalo, Baby Consuelo, Rita Lee, Ademilde Fonseca, Emilinha Borba, Marlene e Dircinha Baptista me lembram Carmen Miranda —que não me lembra ninguém, porque inventou a si mesma.

Mart’nalia pode ter vindo de Elza Soares. Gilberto Gil, de Luiz Gonzaga. Jorge Ben Jor, sem dúvida, de Orlan Divo. Wilson Simonal, Leny Andrade e Claudette Soares, de Johnny Alf. Alayde Costa, de Nora Ney. Maysa, de Doris Monteiro. E Mario Reis veio apenas do microfone elétrico, assim como muitos cantores "sem voz" surgidos por volta de 1928.

Há também as boas influências estrangeiras, como a de Billie Holiday sobre Maria Bethânia; de Bing Crosby sobre Dick Farney; de Joe Mooney sobre João Donato; de Frank Sinatra sobre uma multidão em todas as línguas; e de Nat King Cole sobre Agostinho dos Santos e também sobre João Gilberto. Não, João Gilberto não veio de Chet Baker —havia muita gente cantando baixinho no começo dos anos 1950, era uma tendência.

Já sei, faltou citar o fulano ou me esqueci do beltrano. É verdade. Mas 1.870 caracteres não passam de 1.870 caracteres.

Folha de São Paulo, 06/07/2024