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Trevas a caminho

 

Duke Ellington passava o ano se apresentando com sua orquestra em cidades dos EUA. Com ele, viajavam 18 músicos, alguns com suas mulheres, e a equipe de ajuda. Ao fim de cada show, tinham de procurar um hotel de beira de estrada que aceitasse hóspedes negros. O cantor Billy Eckstine, cujos olhos verdes fascinavam as mulheres brancas, não era aceito nos estados do Sul. E, em Las Vegas, Nat King Cole não podia frequentar e se hospedar nos cassinos e hotéis em que cantava para plateias de milhares. Duke, Billy e Nat eram negros. Eram também príncipes. Mas assim eram os EUA.

Por causa disso, muitos artistas negros americanos, principalmente jazzistas, se mudaram para a Europa, onde eram recebidos aos abraços. As cantoras Josephine Baker, Alberta Hunter, Adelaide Hall e Eartha Kitt, o clarinetista Sidney Bechet, o pianista Bud Powell, o baterista Kenny Clark e os saxofonistas Benny Carter, Don Byas, Lucky Thompson e Dexter Gordon foram só alguns dos que viveram anos em Paris, Londres e Copenhague e viajando pelo continente. No palco, eram estrelas. No dia a dia, sem problemas na rua —ou teriam voltado.

O jazz só ganhou com isso. Em 1952, em Paris, o trompetista Clifford Brown, soterrado na orquestra de Lionel Hampton, fugia de madrugada para gravar com os músicos franceses. Foram esses discos que fizeram os americanos despertarem para o gênio que ele era. Em 1958, também em Paris, Miles Davis gravou a primeira trilha sonora ao vivo de um filme, improvisando à projeção do copião de "Ascensor para o Cadafalso", de Louis Malle, e ainda achava tempo para namorar Juliette Greco durante as trocas de rolo. Era como se a Europa tivesse olhos para tudo, menos para as cores de pele —nem mesmo contra imigrantes negros e pobres.

De repente, estamos vendo casos pesados de racismo e de volta da extrema direita na Alemanha, Áustria, Finlândia, França e até em Portugal. Supunha-se que, depois da Segunda Guerra, que quase a destruiu, a Europa fosse à prova dessa indignidade.

Nunca entendemos como há mil anos houve uma idade das trevas. Agora podemos estar às vésperas de entender.

Folha de São Paulo, 07/09/2024