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Tirando o sono da gente

 

As ruas do Rio sempre foram barulhentas, desde o período colonial. Os cronistas da época já reclamavam dos ambulantes, biscateiros, cocheiros, vendedores de doces e salgados que procuravam atrair os fregueses gritando a excelência de seus produtos. Hoje não são nem os camelôs os que constituem o maior inimigo do silêncio urbano. Há coisas piores, como os carros, as motocicletas, os ônibus e até os usuários de celulares, que costumam falar tão alto nos restaurantes, salas de espera dos consultórios, bancos, aeroportos, que quase não precisam de aparelho para serem ouvidos do outro lado da linha. Mas nada mais barulhento do que os apitos, as sirenes, as britadeiras e, principalmente, as buzinas dos automóveis. É comum ver-se o último motorista de uma enorme fila de engarrafamento buzinar histericamente como se, assim, fosse fazer andar o primeiro da fila, lá na frente. Os níveis de ruído em algumas esquinas movimentadas chegam a cem decibéis, e o permitido em área residencial é a metade, de dia, e 45 à noite. As consequências são perda de audição e estresse. O que fazer?

Em 1994, um decreto municipal proibiu o uso de dispositivo sonoro nos ônibus, com multa para o infrator. Os que eram contra a medida alegavam ser um perigo, porque ia aumentar o número de acidentes de pedestres e de colisões de veículos, mas não consta que isso tenha acontecido. Mesmo assim, houve retrocesso. O Código Nacional de Trânsito, promulgado quatro anos depois, tornou sem efeito a proibição, permitindo a volta do buzinaço. E, hoje, nem dentro de casa se tem sossego, se suas janelas não dispuserem de vidros à prova de som. A invasão sonora acontece até de noite, se der o azar de morar ao lado de um bar ou uma boate.

Embora esse não seja o meu caso, não estou livre do incômodo. Descobri na minha rua uma nova fonte de ruído noturno, além dos caminhões de lixo. São as caçambas de entulho de obras, depósitos provisórios que são colocados vazios na calçada ou na rua e recolhidos cheios, numa operação ruidosa e demorada que é feita à noite, ou pior, de madrugada, em geral entre 1h30 e 2h. Já desci de meu apartamento para reclamar, argumentando com o motorista que existe uma lei do silêncio e que o movimento daquele guindaste arrastando a caçamba de ferro não deixava ninguém dormir, principalmente as crianças. Ele disse que não podia parar o seu trabalho. Que eu ligasse para a empresa. Telefonei e, quando perguntei por que não faziam aquele serviço de dia, a resposta foi que atrapalharia o trânsito. Quer dizer: é melhor atrapalhar o sono da gente.

Pode-se alegar que há mazelas piores com que se preocupar, é verdade. Mas até para suportá-las, necessita-se de noites bem dormidas.

O Globo, 22/04/2015