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Tempos difíceis

 

Quem acompanha as transformações da sociedade não se surpreende com as manifestações que acontecem em várias partes do mundo

Já se disse tudo, ou quase tudo, sobre os atos públicos em curso. Para quem acompanha as transformações das sociedades contemporâneas, não surpreende a forma repentina e espontânea das manifestações. Em artigo publicado nesta coluna, há dois meses, resumi estudos de Manuel Castells e de Moisés Naím sobre as demonstrações na Islândia, na Tunísia, no Egito, na Espanha, na Itália e nos Estados Unidos. As causas e os estopins que provocaram os protestos variaram: em uns a crise econômico-social deu ânimo à reação das massas; noutros, o desemprego elevado e a opressão política foram os motivos subjacentes aos protestos. Tampouco as consequências foram idênticas. Em algumas sociedades onde havia o propósito específico de derrubar governos autoritários, o movimento conseguiu contagiar a sociedade inteira, obtendo sucesso. Resolver uma crise econômico-social profunda, como nos países europeus, torna-se mais difícil. Em certas circunstâncias, consegue-se até mesmo alterar instituições políticas, como na Islândia. Em todos os casos mencionados, os protestos afetaram a conjuntura política e, quando não vitoriosos em seus propósitos imediatos, acentuaram a falta de legitimidade do sistema de poder.

Os fatos que desencadeiam esses protestos são variáveis e não necessariamente se prendem à tradicional motivação da luta de classes. Mesmo em movimentos anteriores, como a “revolução de maio” em Paris, que se originou do protesto estudantil “por um mundo melhor”, tratava-se mais de uma reação de jovens que alcançou setores médios da sociedade, sobretudo os ligados às áreas da cultura, do entretenimento, da comunicação social e do ensino, embora tivesse apoiado depois as reivindicações sindicais. Algo do mesmo tipo se deu na luta pelas “Diretas já”. Embora antecedida pelas greves operárias, ela também se desenvolveu a partir de setores médios e mesmo altos da sociedade, aparecendo como um movimento “de todos”. Não há, portanto, por que estranhar ou desqualificar as mobilizações atuais por serem movidas por jovens, sobretudo das classes médias e médias altas, nem muito menos de só por isso considerá-las como vindo “da direita”.

O mais plausível é que haja uma mistura de motivos, desde os ligados à má qualidade de vida nas cidades (transportes deficientes, insegurança, criminalidade), que afetam a maioria, até os processos que atingem especialmente os mais pobres, como dificuldade de acesso à Educação e à Saúde e, sobretudo, baixa qualidade de serviços públicos nos bairros onde moram e nos transportes urbanos. Na linguagem atual das ruas, é “padrão FIFA” para uns e padrão burocrático-governamental para a maioria. Portanto, desigualdade social. E, no contexto, um grito parado no ar contra a corrupção (as preferências dos manifestantes por Joaquim Barbosa não significam outra coisa). O estopim foi o custo e a deficiência dos transportes públicos, com o complemento sempre presente da reação policial acima do razoável. Mas, se a fagulha provocou fogo foi porque havia muita palha no paiol.

A novidade, em comparação com o que ocorreu no passado brasileiro (nisso nosso movimento se assemelha aos europeus e norte-africanos), é que a mobilização se deu pela internet, pelos twitters e pelos celulares, sem intermediação de partidos ou organizações e, consequentemente, sem líderes ostensivos, sem manifestos, panfletos, tribunas ou tribunos. Correlatamente, os alvos dos protestos são difusos e não põem em causa de imediato o poder constituído nem visam questões macroeconômicas, o que não quer dizer que estes aspectos não permeiem a irritação popular.

Complicador de natureza imediatamente política foi o modo pelo qual as autoridades federais reagiram. Um movimento que era “local” — mexendo mais com os prefeitos e governadores —tornou-se nacional a partir do momento em que a Presidenta chamou a si a questão e qualificou-a primordialmente, no dizer de Joaquim Barbosa, como uma questão de falta de legitimidade. A tal ponto que o Planalto pensou em convocar uma Constituinte, e agora, diante da impossibilidade constitucional disto, pensa resolver o impasse por meio de plebiscito. Impasse, portanto, que não veio das ruas.

A partir daí o enredo virou outro: o da relação entre Congresso, Executivo e Judiciário e a disputa para ver quem encaminha a solução do impasse institucional, ou seja, quem e como se faz uma “reforma eleitoral e partidária”. Assunto importante e complexo, que se apenas desviasse a atenção das ruas para os palácios do Planalto Central e não desnudasse a fragilidade destes, talvez fosse bom golpe de marketing. Mas não. Os titubeios do Executivo e as manobras no Congresso não resolvem a carestia, a baixa qualidade dos empregos criados, o encolhimento das indústrias, os gargalos na infraestrutura, as barbeiragens na Energia e assim por diante. O foco nos aspectos políticos da crise, sem que se negue a importância deles, antes agrava do que soluciona o “mal-estar”, criados pelos “malfeitos” na política econômica e na gestão do governo. O afunilamento de tudo em uma crise institucional (que embora em germe não amadurecera na consciência das pessoas) pode aumentar a crise, em lugar de superá-la.

A ver. Tudo dependerá da condução política do processo em curso e da paciência das pessoas diante de suas carências práticas, às quais o governo federal preferiu não dirigir preferencialmente a atenção. E dependerá também da evolução da conjuntura econômica. Esta revela a cada passo as insuficiências advindas do mau manejo da gestão pública e da falta de uma estratégia econômica condizente com os desafios de um mundo globalizado.

O Globo, 7/7/2013