Cada ser humano é um testemunho do tempo. É um testemunho participante das transformações que ocorreram durante a vida, que vão do corpo ao ritual da morte, passando pelo cotidiano dos costumes, hábitos, modos e seduções.
Assim, cada um de nós -ninguém escapa a esse sentimento- tem a sensação de que as coisas mudaram tanto que é impossível não compará-las com as histórias saudosas do passado: "no meu tempo...", "como as coisas mudaram...", "antigamente...".
Na verdade, o mundo se transforma sempre, como dizia Gould. É um ser vivo, e nós não mudamos tanto.
Será que pertencemos a um instante diferente da história da humanidade, em que as coisas se transformaram como nunca, ou essa é apenas uma visão egoísta? A minha geração viveu entre a magia e a realidade. Jamais poderia, na minha juventude, sonhar o que não é mais um sonho. A sensação é como se estivesse vivendo numa tenda de alquimista da Idade Média e visse sair poções mágicas que faziam do irreal a coisa mais banal e real, como descreveu T. H. White em seu livro "The Once and Future King" (O único e eterno rei, editora W11).
As descobertas científicas nos deram milagres inimagináveis. Hoje se sabe tudo e, por artes de Deus ou do Diabo, posso assistir a todos os fatos que acontecem em qualquer lugar e à mesma hora. Com uma caixinha preta que cabe na palma de minha mão -o celular-, eu falo e localizo qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo, e com essa caixa mágica posso fotografar tudo, escutar conversas, obter todas as informações que desejar, sem descobrir um centro produtor, porque é um novo conceito que governa nossas vidas: o de rede, essa teia (www) que se vai expandindo, tendo como limite o infinito. Leia-se internet.
Se, na minha cabeça, aconteceu um testemunho, o que não acontecerá às novas gerações, que, da cultura oral, fazem uma breve passagem pelo livro e de repente caem num mundo virtual, em que não se sabe mais o que é a verdade e o que é a mentira.
Tantas informações nos são disponíveis, tantas verdades, que não sabemos mais qual a verdade verdadeira.
Todos procuramos adaptar-nos a esse mundo, em vez de ele adaptar-se a nós. Não somos nós que o criamos, é ele que nos cria e administra.
Modificaram-se os sentimentos. Eles estão diferentes e em mutações. Convivemos com a alegria, a tristeza, o ódio, o amor, a violência, a cólera como se fossem coisas virtuais. Nós somos parte de uma ficção. Nossos sentimentos passaram a ser muito mais coletivos que individuais.
Dentro desse contexto, os direitos individuais, o direito à privacidade e o próprio Estado de Direito passam a ser uma ficção. Ninguém é mais um ente solitário. Vivemos permanentemente num simpósio.
O espetáculo é uma mercadoria de consumo, e todos somos parte desse gigantesco "big brother".
Com essas reflexões, vejo aquela moça algemada, que fazia sua prova num concurso, ser vista por milhões de pessoas inteiramente inocente. Guardará pelo resto da vida essa punição. Temos de recorrer aos latinos na velha e cediça interjeição: "O tempora! O mores!" (ó tempo! ó costumes!). Ou, como jocosamente traduzia o meu mestre de latim, padre Newton: "Ó tempo das amoras".
Folha de São Paulo (São Paulo) 08/07/2005