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A tecnologia facilita muito a vida

 

O astro-rei esparge seus raios dourados pela fímbria do horizonte e amanhece um novo e estimulante dia de trabalho. Diligentemente, o escritor se posta com orgulho diante de seu possante computador, dotado de moderníssimos recursos tecnológicos. Sim, o escritor usa a também moderníssima banda larga em sua máquina e, portanto, pode trabalhar conectado permanentemente à internet, o que lhe possibilita acesso quase instantâneo ao oceano de dados lá disponíveis para pronta consulta e garante que sua nobre missão não falhará, no momento em que necessitar fornecer alguma preciosa informação a um vasto público sequioso de conhecimento.


Para poder usar tão possante aparato na plenitude, o escritor teve que munir-se de um par de precauções elementares, aconselhadas pelos especialistas, os quais, como os médicos que falam aos jornais, ostentam como apanágio infundir pânico generalizado. Então, pois ele pode a qualquer momento ser invadido por intrusos de toda laia e ter sua vida informática devastada - equivalente contemporâneo à incapacitação para o trabalho -, a máquina do escritor dispõe de vasto arsenal de defesa, composto por um vigoroso leque de programas protetores, cuja manutenção só exige um pouco mais de atenção do que duas famílias, nada que tome além de um dia ou dois de providências por semana. Repelidos serão vírus e assemelhados, e-mails inaceitáveis, programas espiões e demais soçobros que rondam o intrépido internauta.


Com um gracioso gesto de esgrimista de filme de capa e espada, o escritor dá os cliques adequados para o início de sua sessão. Clique-clique e, mais alguns segundos, ingressará na sofisticada rede que lhe serve. Um segundo. Dois segundos. Três segundos. Muitos segundos e, após um inquietante tremelicar na imagem do monitor, a máquina se nega a conectar-se. Espanto. Como não se conecta, se ontem mesmo só deu preocupação até as três horas da manhã, quando tudo o que havia de errado foi laboriosamente corrigido, em apenas umas oito horas de esforços? Desapontado, mas firme como um almirante na ponte de comando, o escritor conclui que se trata de um pequeno problema, tratável por meio de um simples telefonema para o suporte do provedor da linha rápida, que, como sempre, estará a postos para o amparo requerido.


Como se diz na bela língua de Shakespeare, “will wonders never cease?”, jamais cessarão as maravilhas? O suporte sabe que o escritor gosta de música e, portanto, depois de pedir, através de uma acolhedora gravação, que tecle umas duas dúzias de números no telefone, não lhe regateia música. A mesma durante cerca de trinta a quarenta minutos, interrompida volta e meia por um amável “aguarde”, mas não se pode querer tudo neste mundo e, finalmente, o escritor é atendido. Em primeiro lugar, por uma moça que toma os dados de sua conta e, após novo “aguarde”, o remete a um especialista, o qual, como todo especialista, não pode manifestar-se imediatamente. Mas há mais música (a mesma) e, quando o escritor, já com o organismo saturado pela generosa chuva de colcheias, fusas e semifusas repetidas, se prepara para tomar um tranqüilizante, o especialista fala. Solicita os mesmos dados que sua predecessora, pede um instantinho, silencia vários minutos e volta com a valiosa informação. O sistema, apenas pela quarta ou quinta vez na semana, está de fato atravessando uma certa instabilidade, que, por infeliz acaso, afeta a área onde o escritor procura trabalhar. Mas, acrescenta ele, estão se empenhando em solucionabilizar ( sic ) o problema, tão logo seja possível. E, por caridade, para quando se prevê a bendita solucionabilização? Ah, não se tem previsão, mas é coisa para qualquer momento, no máximo três horas.


Claro, o escritor pode trabalhar sem estar conectado, mas princípio é princípio. E rico dinheirinho gasto com provedores é rico dinheirinho. Portanto, fica difícil a concentração, enquanto não se solucionabiliza a dura contingência. O escritor, envergonhado, abandona resoluções arduamente mantidas durante meses e, com as mãos pouco firmes, acende um cigarrinho. Passado algum tempo, volta a tentar a conexão. Alvíssaras! Desta feita com grande lepidez, a conexão com o provedor rápido se estabelece. Tudo solucionabilizado? Não, lamentavelmente, não, eis que, além desse provedor, é necessário um outro, cuja função é autenticar a conexão, o que lá seja isso, mas o escritor é um brasileiro como todos os outros e aprendeu que não adianta discutir e mister se faz aceitar alegremente tudo o que lhe impõem por todos os lados, todos os dias. E esse provedor, por algum motivo, se recusa a fazer a autenticação.


Que estará havendo? Já desmoralizado em sua conversão ao antitabagismo, o escritor observa o quinto ou sexto cigarro fedendo no cinzeiro, acaba de ouvir música do autenticador (outra música, desta vez a repetição aparentemente ad infinitum de umas seis notas) e consegue comunicar-se com o atendente. Notícias auspiciosas? Nova solucionabilização pela frente? Lamentavelmente, não. O sistema padece de uma queda misteriosa, sem previsão de retorno. Mas, mas... Alguma coisa funciona nessa m...? - quase pergunta o escritor, deseducada e primitivamente. Claro que sim, tudo funciona, que é que ele está pensando, o país usa tecnologias de ponta nesse setor.


O astro-rei esparge seus raios rubros sobre a fímbria do horizonte, baixa a noite e a solucionabilização não vem com ela. Talvez amanhã, quem sabe? O escritor reluta, mas conclui que nada funciona direito nesta m... mesmo. Resta o consolo de que tanto os provedores quanto ele empregam tecnologia de ponta, coisa de África luliana. E - quem sabe? - talvez o jornal aceite colaborações a pena de ganso, não tão modernas, porém menos sujeitas a quedas e falta de solucionabilização, a não ser que o governo regulamente seu uso. O jornal certamente aceitará, confia o escritor, pois, em terra onde muita gente não conhece garfo e grande parte dela não encontraria serventia para tão exótico utensílio, devemos, sim, ter tecnologia de ponta para mostrar às visitas, mas é sempre bom contar com o patriotismo do ganso nacional.


 


O Globo (Rio de Janeiro -RJ) em 30/11/2003

O Globo (Rio de Janeiro -RJ) em, 30/11/2003