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A tarde do meu bem

 

Ouço dizer que a noite está acabando. Peças de teatro, shows, filmes, danças, festas, tudo hoje tem de começar mais cedo para terminar mais cedo, antes de meia-noite. As pessoas querem ir embora a tempo de pegar a condução para casa. Acham também mais seguro sair ainda com gente em volta. Outros alegam escola ou trabalho na manhã seguinte. Ninguém mais quer saber da madrugada e, para minha surpresa, não são os coroas, a turma do sub-80, que já trocou faz tempo o Johnny Walker pelo Ovomaltine. Pasme: é uma exigência da geração Z, a atual galera entre 20 e 30 anos.

Sobrevivente de uma geração habituada a sair de casa à 1h, encher o tanque na Escócia, ouvir música ao pé do ouvido, praticar doces esportes noturnos, consumir substâncias desaconselháveis, ver o dia nascer na rua e tomar o café da manhã no botequim —tudo isso várias noites por semana, às vezes indo direto para o trabalho—, confesso minha preocupação. Aonde iremos parar com essa juventude sensata e equilibrada? É o fim do romance, da Lua e das estrelas, dos vampiros e lobisomens. E, com a noite reduzida à matinê, onde os escritores, compositores e cineastas acharão inspiração?

Fosse hoje, o clássico dos clássicos na literatura não seria "As 1001 Noites", mas "As 1001 Tardes". Scott Fitzgerald teria escrito "Suave É a Tarde", não "Suave É a Noite". Eugene O’Neill, "Longa Jornada Tarde Adentro". Shakespeare, "Sonhos de uma Tarde de Verão". José Mojica Marins teria filmado "Ao Meio-Dia Levarei Sua Alma". Walter Hugo Khouri, "Tarde Vazia". Os Irmãos Marx, "Uma Tarde na Ópera". Federico Fellini, "As Tardes de Cabíria". John Travolta, "Embalos de Sábado à Tarde".

Dolores Duran teria composto "A Tarde do Meu Bem". Chico Buarque, "Tarde dos Mascarados". E os Beatles, "A Hard Day’s Morning".

O Réveillon passaria a ser às 8h. E os turistas, a cair no golpe "Boa tarde, Cinderela".

 

 

 

Folha de São Paulo, 20/01/2024