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Também fui, mas em 1985

 

O ‘maior festival de rock do mundo’, como se anunciava, foi alvo também dessa polêmica: ou se era contra ou a favor, ou se gostava de samba ou de rock

Encharcado de chuva, chafurdando na lama, brigando com os mosquitos, eu estava lá, no primeiro Rock in Rio, cobrindo esse megaevento que mobilizou uma multidão por sete dias. Um ano antes, os brasileiros tinham ido às ruas lutar pelas Diretas; depois, já em 85, empolgaram-se com a eleição de Tancredo e em seguida choraram sua morte. Passado o luto, amadurecido pela frustração e pelo sofrimento, o país aprendia que democracia é a difícil convivência com o contrário. O ano do primeiro Rock in Rio talvez tenha sido o último da transição, quando de fato a democracia começou a dar as caras na área da cultura, quando enfim o maniqueísmo saiu de moda para dar lugar ao pluralismo. Se 84 foi para a cultura o ano do consenso, tecido pela ação conjunta das oposições, 85 foi o ano do dissenso, isto é, do debate e da polêmica; em uma palavra, do desacordo.

O “maior festival de rock do mundo”, como se anunciava, foi alvo também dessa polêmica: ou se era contra ou a favor, ou se gostava de samba ou de rock. Mas já então era possível concluir que uma preferência não excluía necessariamente a outra. O hábito desse tipo de exclusão soava como sectarismo que iria cair em desuso, embora ainda se esbarre a todo momento com resíduos de intolerância. Posto que a primeira vez a gente não só não esquece, mas quase sempre idealiza, não voltei agora ao RIR, mas soube que tem prevalecido o clima de festa e celebração de 30 anos atrás — justamente o contrário do que aconteceu neste fim de semana do lado de fora da Cidade do Rock.

Em ruas de Botafogo e nas praias de Ipanema e Copacabana grupos promoveram um festival de selvageria com arrastões e assaltos como há muito não se via igual. A novidade é que uma ordem da Justiça impediu a ação preventiva da polícia, que só podia abordar e apreender jovens em flagrante delito. Na prática, segundo o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, a decisão significa que um policial, diante de menores “vindos de 40 quilômetros de distância, sem dinheiro para se locomover, beber ou comer, sem documentos e sem a companhia de responsáveis”, não pode considerá-los “vulneráveis”. Outra dificuldade, que as imagens de TV mostraram, foi a de dar flagrante em infratores que usam a tática de arrancar a bolsa, a carteira, o cordão ou o celular de um banhista e sair correndo no meio da multidão.

Como reação, moradores de Copacabana retiraram de um ônibus e espancaram jovens que tinham saído da praia. Outros “justiceiros” passaram a recrutar voluntários pelas redes sociais para, armados de porretes, combater os assaltos na Zona Sul. Ou seja, é a tentativa de fazer justiça pelas próprias mãos, é a barbárie.

O Globo, 23/09/2015