Leitor assíduo desta coluna pergunta-nos se está certa sua crítica aos dizeres de placas de sinalização que lê na Via Dutra, no trajeto Rio-São Paulo: REDUZA VELOCIDADE. “No meu entendimento, ela pede à velocidade que reduza, certo? Não seria REDUZA A VELOCIDADE a mensagem correta?”
A primeira mensagem que a placa assim escrita comunica aos motoristas que trafegam pela Via Dutra é que, naquele trecho, têm de diminuir a velocidade para evitar acidentes. Se houver consciência de todos, serão evitados vítimas e prejuízos materiais. Não resta dúvida de que a interpretação da placa proposta pelo leitor exigiria maneira especial de entoar a frase e até de pontuá-la, interpretação que parece não ser a natural dos usuários da estrada. É mais natural, conforme propôs corretamente o leitor, interpretar REDUZA VELOCIDADE como equivalente a REDUZA A VELOCIDADE, isto é, como se nela estivesse escrito o artigo definido A.
E agora cabe a pergunta: estará correta a frase sem o artigo? É claro que sim. A língua permite uma série de frases que se constroem com verbo e substantivo sem a presença de artigo. Em linhas atrás empregamos “não resta dúvida”, e entre o verbo [resta] e o substantivo [dúvida], desacompanhado de um modificador, não há o concurso do artigo. Citar exemplos do tipo “ter razão”, “ficar a ver navios”, “sentir dúvida”, “criar encrenca” seria enfastiar o leitor pela grande quantidade deste uso. O emprego do artigo definido não fica apenas restrito à oposição “conhecido” (definido) e “desconhecido” (ausência do artigo definido ou emprego do indefinido). Há sutis situações de que o falante tira partido com admiráveis resultados expressivos.
Por acaso, outro dia, relíamos substancioso comentário de um excelente conhecedor de nosso idioma, o professor cearense Martinz de Aguiar, que, no livro “Notas de português de Filinto e Odorico” (Organização Simões, Rio de Janeiro, 1955), lembrava os versos de Gonçalves Dias do poema “Harmonias”:
Ao par amante, que inocente vaga,
Sou eu quem prendo em derretido enleio:
– Secura ou fogo, ardente devaneio
Que dá morte a paixão, que sempre afaga.
O clássico maranhense deixou na edição dos “Segundos Cantos” (Tipografia Clássica de José Ferreira Monteiro, Rio de Janeiro, 1848) o objeto indireto ‘a paixão’ com a respectiva preposição ‘a’, mas o substantivo ‘paixão’ sem artigo, utilizando o mesmo recurso de ter o substantivo não precedido do artigo definido feminino ‘a’. Desconhecendo esta possibilidade do idioma, ou passando por cima de uma sutil – mas correta – intenção estilística do poeta, seus editores modernos resolveram optar por introduzir o artigo ‘a’ que o poeta não usou, e fundir por crase ‘a’ preposição com o ‘a’ artigo (‘à’), alterando a gramática do verso para “Que dá morte à paixão, que sempre afaga”, destruindo o paralelismo sintático desprovido de artigo em ‘morte’ e ‘paixão’. Por consciência editorial anotaram os editores modernos “Está a paixão”, como fez Manuel Bandeira, na sua prestimosa “Obras poéticas de Gonçalves Dias”, 2 vols., Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1944.
Sutilezas do emprego e do não emprego do artigo definido fazem parte da riqueza do nosso idioma e, por isso mesmo, devem merecer a atenção daqueles que desejam enriquecer-se com esses tesouros expressivos. Concluindo, nada há para mexer na placa da rodovia.
O Dia (RJ), 15/1/2012