O calendário marcado pelos dias gloriosos do ano e a vida cotidiana ajuda os cronistas. Como fugir dos sinos do Natal, que têm os sons das lembranças de todos os natais, tantos quantos a nossa vida? São memórias que vão desde a infância, nas sombras cinzas das lembranças daquele interior perdido nos campos verdes do Maranhão, quando íamos à igreja louvar o nascimento de Deus, seu filho, cujas sandálias João Batista dizia ser indigno de desatar, até a madurez da reza em comum com a família, lendo o Evangelho de São Marcos, que descreve o que aconteceu na manjedoura de Belém.
Não me recordo de Papai Noel em Pinheiro, onde nasci, nem em São Bento, onde vivi a minha infância, quando descobri as cores e meus olhos viram desde os pássaros voando em bando sobre os campos de arroz brabo até o corredor dos retratos, onde aqueles velhos barbudos e senhoras de vestidos rodados contavam a decadência da família Araújo.
Depois, a primeira lembrança de Papai Noel, quando ele me enganou. Minha irmã convencera-me de que ele ia trazer um cavalo e ele me deixou debaixo da rede um tambor pintado em xadrez preto, vermelho e branco e um pedaço de pau para tocá-lo, levando-me a azucrinar os ouvidos dos meus avós e fazendo-me mais feliz do que se no meu quarto estivesse o mais belo poldro alazão.
Mas o Menino deitado em palha de arroz com os braços abertos e olhinhos castanhos sempre me trouxe a mensagem de ser meu amigo e irmão, filho de minha mãe e neto de minha avó, que chamava Madona.
Novos natais eram de reza, chocolate e bolo de mandioca. Fiquei horrorizado quando, já homem, soube que existia em Ax-les-Thermes um Evangelho das Rocas que era lido por um ancião letrado “durante as longas noites de inverno entre o Natal e a Candelária; era um livro sobre sexos, casos de amor, relações entre marido e mulher, superstições”. Século 15 e as mulheres em volta repetiam a leitura em voz alta, com grande alegria. A Inquisição levou à fogueira muita gente desse divertimento tido como pecaminoso, embora Jesus não tenha tido tempo para tratar dessas coisas menores, entregue a César, como o dinheiro. Ele não viu pecado na carne. Foi São Paulo quem inventou estar o Diabo na saia das mulheres.
Fiquei com a crença de que esse velho antigo, que lia evangelhos apócrifos e eróticos para aquelas pudicas velhas que fiavam rocas, podia ser Papai Noel.
Outro dia, um amigo meu quis testar minha capacidade de crer e perguntou-me se eu acreditava que os americanos iam sair do Iraque enquanto existisse ali uma gota de petróleo. Respondi que sim.
-E em Papai Noel?
- Mais ainda.
E o que é Papai Noel?
É um sonho de solidariedade que o homem construiu e, como diz Borges, só há uma coisa eterna, é o sonho.
Jornal do Brasil (RJ) 19/12/2008