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Sim, mas quem não é?

 

Vejam vocês, o sujeito pensa que já viu tudo, tendo nascido na primeira metade do século passado, e se tornado foca (involuntário - meu pai não era moleza e me meteu numa redação de jornal sem me consultar e eu que voltasse para casa rejeitado, porque destino mais ameno teria quem embarcasse para a Coréia por volta daquela época) aos 17 anos e militado em tudo que é tipo de coisa em redação de jornal, no tempo em que se berrava e fumava nas redações, só tinha uma mulher ou outra, assim mesmo considerada meio anormal, ou de comportamento sexual aberrante ou vítima de distúrbios mentais, e bastava aprender a pilotar uma Remington para tentar se dar bem.


Viu nada. Por exemplo, eu achava que sabia a lista completa do que o camarada que escreve em jornal e quer evitar aporrinhação desnecessária e inútil deve abordar somente quando as circunstâncias impõem. Se não for estritamente necessário, longe delas. Não é uma lista, digamos, coerente, pois não obedece a nenhum critério lógico, pelo menos que eu tenha percebido. E não vou dar exemplos concretos, até porque, dando-os, estaria violando minhas próprias regras. Há categorias, dos mais diversos tipos, que não podem ser mencionadas absolutamente, sob pena de choverem cartas de tudo quanto é tipo, às vezes semanas seguidas. Não tem santo, por exemplo, que me faça mencionar os issos. Os aquilos, então, nem pensar. Entre os aquilos tem uma categoria terrível, que ainda me persegue, apesar de agora muito esparsamente, há mais de 40 anos. E tudo o que eu fiz foi mencioná-la, sem elogiá-la ou desaprová-la ou mesmo qualificá-la (que coisa horrível esses “á-las” aí, hein? - os senhores editores têm todo o direito de escoimar do texto essas sonoridades desagradáveis; perdão, leitores). Nunca mais toco no nome deles, nem seus derivados, não há santo que me faça, a não ser que ele seja ministro e seja pegado com um sacolão de dólares inexplicáveis.


Pois é, pensava que já sabia tudo, mas Deus pune a soberba. Eis que se revela, pujante e combativo, o pessoal do entrelinhismo, que se mobilizou extraordinariamente contra meu desejo de que não me leiam nas entrelinhas. A maior parte se ofendeu, de tal forma que, arrependidíssimo, digo que estamos numa democracia e defendo o seu deles, bem como o seu de vocês, direito de ler nas entrelinhas o que bem entenderem. Bem, quase tudo, para ser sincero, porque pode ser que uma entrelinhista qualquer revele imaginação fora do comum e me atribua posições de embaraçosas a comprometedoras. Tirando isso entrelinhem à vontade, Deus me defenda de ameaçar esse direito sagrado.


Entrelinhem, pois, o que quiserem para o que vou dizer, embora eu mesmo não esteja entrelinhando nada, a não ser numa despretensiosa ironia ou outra que possa escapar-me. É que eu já estou sinceramente acreditando que devemos começar a botar a lenha no forno, porque a pizza vai ser grande. Na verdade, se levadas aos extremos a que vêm sendo levadas, as investigações acabarão por envolver todo mundo, inclusive nós. E não é fantasia louca minha, não. Muita gente já foi executada erroneamente, muita gente já passou a vida em cana, no lugar do verdadeiro criminoso, de maneira que não é fantasioso imaginar que, se esse negócio continuar interminavelmente, como parece que vai continuar, acabarão pegando a mim e, lamentavelmente, a encantadora leitora e o gentil leitor. Será, por exemplo, que já não somos laranjas de algum esquema, sem saber?


Ou seja, todo mundo culpado, ninguém culpado. Claro, cumprir-se-á alguma espécie de cerimônia votiva com alguns pequenos sacrifícios e depois o melhor é que fique tudo por isso mesmo. O homem (quase escrevo “dr. Lula”, porque sempre dou esse título a quem está no poder, mas, no caso, o entrelinhismo poderia vir a ser-me diria mesmo fatal e não quero curtir com a cara do presidente, quero só dizer o que penso mesmo) já se explicou, daquela forma arrebatada, mas se explicou, à nação. E, em seguida, o PT pediu desculpas, profusas desculpas, ao povo brasileiro. Que é que querem mais, que vão lavar o chão das cozinhas dos pequenos-burgueses que se indignam - coisa mais atrasada não cobrem os céus - e adotam esse falso moralismo só para atrapalhar um governo que faz, que realiza, que empreende, que inova, que abre frentes pioneiras, que reduz a pobreza, que afirma renhidamente a soberania nacional e a colocação dos interesses do Brasil acima dos interesses da banca internacional? Já causaram estrago suficiente com essa babaquice e que querem mais? Querem cabeças, é isso, querem cabeças, insuflados pela má imprensa, praga responsável por tudo.


Concordo integralmente. Matem-se os devidos bodes expiatórios, assim até mesmo satisfazendo anseios atávicos de práticas religiosas primitivas tão arraigadas no inconsciente brasileiro, e depois continua tudo como antes no quartel de Abrantes, fica o dito por não dito, não se toca mais no assunto, por nós o caso está encerrado, cairemos duros para trás se acontecer alguma coisa a alguém mais, águas passadas não movem moinhos, aquele que não pecou atire a primeira pedra, já não está mais aqui quem falou, o que não tem remédio remediado está, pior seria se pior fosse, errar é humano, ninguém é infalível, todos merecem uma segunda oportunidade e assim por diante. Devemos, pois, sério mesmo, acender logo o forno dessa pizza, é questão de sobrevivência coletiva. Vamos acabar com essa história de querer que o PT seja não só um partido de vestais, quando todo mundo nos outros se locupleta mas a elite quer tirar-lhe essa prerrogativa tradicional, como também um partido de esquerda. O próprio presidente disse que não é de esquerda, para não falar, como já murmura a voz do vulgo, que, no Brasil, nem a esquerda é direita.


 


O Globo (Rio de Janeiro) 21/08/2005

O Globo (Rio de Janeiro), 21/08/2005