Conheci Carlos Castello Branco na casa de meus pais, há mais de meio século, quando as luzes da ribalta parlamentar focaliza- vam intensamente o deputado Afonso Arinos. Lembro-me de uma noite na qual Castello, com seus colegas Odylo Costa, filho e Villas-Bôas Corrêa, aguardou, com paciência evangélica, o fim de um rompante do líder oposicio-nista, a deblaterar contra a imprensa, inconformado com insinuações de que um discurso, feito por ele em torno de apelo do presidente Vargas à oposição para apoiar seu projeto de reforma administrativa, teria propósitos adesistas. Terminado o destampatório, os três amigos recolheram do deputado, já sereno, declarações que contornaram a crise política esboçada.
Eu me encontrava com Castello na casa de Odylo - centro de carinho e da mais generosa hospitalidade, onde se reunia, em Santa Teresa, a nata da intelectualidade do Rio - e ainda nos bares e boates que animavam as noites cariocas. Mas foi quando me casei e passamos a morar quase defronte aos amigos fraternos Otto e Helena Lara Resende, também freqüentados assiduamente por Castello e Élvia, que nossa amizade se tornou mais íntima. Enquanto ele e Otto viveram (Odylo também, só que partiu mais cedo), sempre lhes pedi a opinião antes de publicar qualquer trabalho de maior fôlego. Castello posfaciou meu primeiro livro, Otto prefaciou o segundo.
Em 1956, o Itamaraty removeu-me para a Embaixada do Brasil em Roma, e, pouco depois, lá hospedei Castello, que seguia para uma conferência da Unesco em Nova Délhi. Eu fora designado para representar a embaixada na tocante cerimônia do Dia de Finados, em Pistóia, no cemitério que abrigava os restos de mais de 400 militares brasileiros mortos na Segunda Guerra, e o convidei a viajar comigo e Beatriz. Resolvemos esticar a excursão até Florença, ainda desconhecida para nós dois.
Naqueles dias, forças russas cercavam Budapeste, prestes a esmagar a tentativa de libertação com que a Hungria busca-ra desvencilhar-se da condição de estado-satélite soviético. Íamos visitar a Galeria dos Ofícios, mostra incompará-vel de arte italiana da Renascença. Saímos do hotel, e, após a escala habitual no bar da esquina, para, por sugestão de Castello, nos dessedentarmos com um copo do vinho branco de Orvieto, adentramos a Praça da Senhoria. Do outro lado, aglomeravam-se pessoas em torno de uma banca de jornal, buscando notícias frescas do drama húngaro. Julgando-o tão interessado quanto eu, alvitrei ao repórter político: ''Vamos ver o que é aquilo?''. Mas quem respondeu foi o humanista: ''Aquilo é o efêmero''. E caminhou, sem hesitar, para o museu.
Castello voltaria com Jânio Quadros a Roma. Recebi-os e os acompanhei por vários dias, prestando-lhes apoio. O candidato à Presidência da República regressava de uma viagem ao Oriente, e, uma vez eleito, convidou o jornalista para chefiar sua Secretaria de Imprensa.
Poucos anos depois, habitávamos a mesma quadra em Brasília (eu era, então, deputado federal), e Castello passou-me, para ler e opinar, os originais do depoimento que escrevera sobre a renúncia de Jânio, advertindo-me a não tencionar publicá-lo, pois temia suscetibilizar amigos. E, de fato, o livro só foi editado após sua morte. Do exterior, escrevi então a Élvia, encarecendo a divulgação do teste-munho. Sobre sua importância, bastaria lembrar Fernando Henrique Cardoso, quando presidente, a mencioná-lo, de público, por mais de uma feita, como exemplo do mal que as intrigas de bastidores podem causar à gestão de um chefe de governo.
Castello esteve ainda conosco em Genebra, em Washington (cobrindo a visita presidencial de Médici a Nixon) e na Holanda, onde o levei ao Rijkmuseum, em Amsterdam, e ele ficou tão encantado com a Ronda da noite, de Rembrandt, que desistiu de circular pelo resto do museu, permanecendo sentado diante da tela enorme, em muda contemplação. Passou vários dias conosco. Só mais tarde Élvia me disse que a visita fora de despedida. Ele já estava atingido pelo mal que o levaria.
A partir da publicação diária da Coluna do Castello no Jornal do Brasil, pouco antes do início da ditadura militar, o grande jornalista tornou-se barômetro a medir a pressão da vida política brasileira. Com isenção infle-xível, integridade inatacável, linguagem simples, avessa a hipérboles, parca em adjetivos e advérbios, irônica e pene-trante, ele foi, ao longo dos anos, transfor-mando a própria opinião em opinião pública. E da notícia fez história.
Ocorrem-me, porém, exceções à sua imparcialidade proverbial. Nascido no Piauí, Castello estudara Direito em Belo Horizonte e me contou que, por essa época, passava pela casa dos Lara Resende a caminho da faculdade. Vendo Otto à janela, parava para trocar dois dedos de prosa, sem que o amigo o convidasse a entrar. Muito tempo depois, durante o regime autoritário, o piauiense Francelino Pereira foi escolhido para governar Minas Gerais, onde fizer política. Naquele dia, a Coluna do Castello analisou o assunto com a frieza, lucidez e objetividade de sempre. Porém concluiu, de forma surpreendente, com um ''Viva o Piauí!''. Estranhei o rompante incomum, e ele desabafou: ''Eu me lembrei do Otto.''
Ao saber da morte de Afonso Arinos, o jornalista, sempre tão equilibrado, isento e imparcial nos julgamentos, prudente e cuidadoso ao exprimi-los, não hesitou em depositar na celebrada coluna: pelo ''desaparecimento de um grande brasileiro'', ''num luto modesto, a homenagem do admirador, do amigo e companheiro''.
Uma vez, ele me confidenciou que se auto-analisava o tempo todo. Castello sofreu muito, física e moralmente. Mas, sempre tranqüilo, nunca o vi exasperar-se, levantar a voz, se agitar. Seu primogênito morreu num acidente de automóvel. Acorri, então, a Brasília para aguardá-lo e a Élvia, que viajavam pela Europa, a fim de levar-lhes o inútil consolo da companhia e solidariedade de quem já passara pelo mesmo transe.
Quando parecia desenganado pelo primeiro tumor maligno que o acometeu, reuni os mais próximos em nossa casa, para despedi-lo antes do seu embarque para Houston, onde se fariam as últimas tentativas de salvá-lo. Estavam Anah e Afonso Arinos, Helena e Otto. João Cabral não pôde vir, pois, naqueles dias, a sua corajosa, desvelada, admirável Estela se apagava, também vencida pelo câncer. Afonso entregou a Castello o terço de ouro que trazia sempre na algibeira, com a recomendação de que nunca o abandonasse. Eu dei-lhe uma imagem setecentista, que ganhara dos meus pais, de Santa Rita de Cássia, ou dos Impossíveis, tão cultuada em Minas Gerais. Beatriz ofertou-lhe a sua venerada Nossa Senhora de Fátima. Dessa feita, nosso amigo se recuperou, e Élvia me contaria da sua inquietação ao esquecer o terço em algum lugar, ou ao não ver as imagens sobre a mesa de cabeceira. Dizia-se agnóstico, porém ela o observou, mais de uma vez, sentado na beira da cama, quieto, com a mão no bolso, onde pusera o terço. Talvez orasse.
Castello foi agraciado, nos EUA, com o prêmio de jornalismo Maria Moors Cabot. Fotografaram-no, pequenino, entre dois americanos enormes. Afonso Arinos, não resistindo, telegrafou-lhe: ''Castello, dos três você é o maior''. E era.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 22/06/2005