Na virada de página da crise, o Planalto, ao receber a bancada petista, sufragou a idéia de que os membros do PT objeto do denuncismo possam desde já renunciar ao mandato e manter, pois, a capacitação política para reeleger-se. As condições do impasse, pastelão cívico, superaram o momento de uma cobrança pública e exigem o ir adiante do governo no seu compromisso de fundo.
No mesmo empenho, mas com outro risco, começa a recuperação da diferença da legenda frente ao impacto destes quatro meses sobre o laxismo da cultura política brasileira; os novos níveis alcançados pela corrupção sistêmica; e o choque do velho moralismo sobre a ética profunda da mudança. O que emergiu foi a procura das conexões mais fundas do asserviçamento dos nossos parlamentares ao poder econômico emergente e especulativo, como exprime o vínculo de organizações como a do Banco Opportunity e de Daniel Dantas com o valerioduto. Hoje, mais que pressentidas, essas denúncias já criaram um imaginário de culpabilidade em episódios como o do mensalão. De logo, são cobrados pela opinião pública, independentemente de provas, sequiosa das liturgias de reparo à sua indignação.
Os incidentes únicos destas semanas assentaram também o clima de consolidação democrática, na crítica e no debate das instituições do país. Sobretudo, da capacidade de investigação policial, ao lado dos impasses da correição frouxa do Congresso, envolvido nos crimes de responsabilidade parlamentar. As novas evidências aí estão, a forçar o desfecho das averiguações, por mais que demorem, e hoje a salvo da prepotência dos sigilos ou dos interditos condescendentes entre poderes.
A conturbada prisão de Paulo Maluf, apesar da repetição infrutífera de habeas corpus - ainda que à margem do núcleo da presente crise -, impacta a consciência popular como a quebra do fetiche da impunidade, de todo o sempre, dos donos do sistema. Na mesma senda, avançou a certeza da determinação presidencial, ''doa a quem doer'', na averiguação da conduta do próprio PT.
Também emergiu na crise a clara diferença entre a corrupção, clássica, das clientelas, dos superfaturamentos, dos caixas dois e o erro da gestão partidária em assumir os riscos do abuso das vantagens oferecidas para o comando das maiorias no Congresso e a garantia do ''presidencialismo de coalizão''.
O que foi risco calculado e, de fato, o que foi inebrio com as tentações do começo de um governo consagrado pela maioria torrencial de 2002? Lula e a liderança toda do Campo Majoritário não se têm furtado a repetir a responsabilidade por esse equívoco e assumi-lo perante o país. O que importa agora é saber como o governo avança na resposta ao seu compromisso primordial, na opção pelo ''outro Brasil''.
O que se assenta de vez pela crise moribunda é o amadurecimento institucional e político do país, posto à prova entre os velhos preconceitos, as síndromes do denuncismo, as presunções de culpabilidade, como entremostram as três Comissões de Inquérito do Congresso.
De que forma reafirmar o caminho, mesmo sem o PT na sua força original, e mantida a fidelidade à mudança que garante o presidente, furtando-se ao unipersonalismo do retorno às lideranças sindicais? Mas esse despegue da inércia reclama a afirmação de uma verdadeira virada de página que merece o país que espera e se viu ameaçado de paralisia pelo denuncismo moralista.
O que importa é a fruição do dividendo social da estabilidade de definir, na mudança que mal começa, o programa bolsa-família, que já atinge 11 milhões de famílias, ou a experiência inovadora do fundo-crédito, ou a absorção da força de trabalho pelo projeto de infra-estrutura e saneamento do tecido urbano, que já abriga 78% de nossa população.
A nação de fundo, a que mal chegam os incidentes do mensalão, é também a que espera pelo acesso ao país institucionalizado e que tem na figura de Lula a sua garantia. O Brasil instalado custa a entender. O passo adiante da cidadania ganha com o impeachment de Collor não vai à condenação do governo Lula. Ou à sua exaustão inerte e refém do sistema contra o qual foi eleito.
A crise exauriu o potencial de desestabilização política imediata no país. Da mesma forma que, mesmo mantenha como refém o presidente, não logrou fazer dos seus contendores os beneficiários de um novo tempo, merecedores de uma confirmação eleitoral. Assim como se recupera a popularidade de Lula após o nadir de setembro, para o ''país-bem'' são ainda insuspeitos a profundidade e o ímpeto das molas desse retorno do presidente ao favor eleitoral. E não o capturou, a oposição como seu desafiante, nem logra ela se dissociar dos planos mais obsoletos do velho Brasil, alvo da lógica já inarredável da mudança.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 19/10/2005