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Rui e alceu: dois líderes culturais

 

Concentro-me, neste artigo, numa figura de que temos sentido falta, sem perspectiva de que venhamos a nomeá-la entre homens públicos, professores universitários, intelectuais em geral e demagogos da cultura, com trânsito na mídia e nas editoras. É o maître à penser, o líder de uma cultura e de uma civilização que domina, pelo prestígio e pela ascensão sobre a nação inteira ou uma fatia dela, como condutor dos destinos do país e que exerce o domínio com superioridade.


Não se trata de carismático leigo, personagem que Max Weber foi buscar na teologia e o incluiu no seio das multidões, com grande sucesso. Trata-se do ser humano dotado de qualidades excepcionais de cultura e de ascendência de líder, como expressão cultural, sobre as massas humanas ou sobre o povo, no seu exato sentido sociológico. No fim do século 19 e até meados do século 20, no Brasil, o maître à penser diante do qual toda a nação fazia reverência até o fanatismo era Rui Barbosa, que tinha noção do seu imenso prestígio.


Provam-no o Discurso do jubileu, obra-prima da literatura barroca e da certeza do personagem que era efetivamente um líder cultural, e a Oração aos moços, proferida na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco para a turma que se formou em 1920. Foram duas obras-primas da literatura barroca, porque ninguém escreveu melhor do que esses dois discursos de Rui, que foi elevado à altura de um semideus, como diziam seus fanáticos admiradores.


Creio não estar afirmando que Rui, como maître à penser, na expressão que os franceses sempre usam, foi o maior no Brasil. A nação inteira o admirava, embora não o tenha querido como presidente, nem era admitido como candidato a presidente pelos membros das comissões diretoras do Partido Republicano. Rui foi um fenômeno cultural. Quem ler, por exemplo, O papa e o concílio, uma obra detestável, por ele mesmo repudiada, escrita quando tinha apenas 27 anos, ver-se-á diante de uma organização cultural como não tivemos antes ou depois desse incomparável debatedor de idéias e desse corajoso apóstolo da democracia liberal, no século 19.


Morto Rui, em 1923, só tivemos outro maître à penser, outro líder cultural, em Alceu Amoroso Lima, o brasileiro que levou milhões de católicos e de leigos não religiosos, mas respeitadores do credo de tantos contemporâneos, a se encontrarem com o seu pensamento e a segui-lo em suas idéias. Foi o período áureo deste segundo maître à penser, não obstante as agitações político-partidárias do pós-guerra, com a eleição de Dutra e, principalmente, de Getúlio Vargas, que nunca deveria ter voltado ao poder.


Depois da revolução de 64, Alceu Amoroso Lima tomou partido e pôs todo o seu talento de escritor incomparável, pelo estilo, pela lógica e pela exposição de idéias, a serviço do combate à ditadura militar, pois, como no começo da República, outros ''fatos da ditadura militar'' vieram comprometer a instauração plena da democracia no Brasil. Mas, Alceu Amoroso Lima, o inesquecível Tristão de Ataíde, da crítica literária e da difusão do pensamento no Brasil, não cedeu diante das espadas e foi poupado.


Faz lembrar uma expressão de De Gaulle, quando um ministro lhe propôs prender François Mauriac e ele respondeu a seu inquieto colaborador que não era possível prender Voltaire. Assim não era possível também prender e aferrolhar num calabouço o admirável Alceu Amoroso Lima, com todo o seu saber, o seu amor ao Brasil e suas convicções políticas sobre a democracia com liberdade.


Foi ele um autêntico maitre à penser, em dimensões semelhantes às de Rui. Não vejo outros que se lhes comparem pela presença na História, pela obra que realizaram e pelo domínio que exerceram sobre grande parte do Rio de Janeiro, ou, no caso de Rui, sobre todo o povo. Alceu recebeu justas homenagens no transcurso do 20º aniversário de sua morte. Ele está hoje em companhia de outros grandes brasileiros, como Miguel Osório de Almeida, um acadêmico e cientista da mais alta sabedoria que, ao lado de Austregésilo de Athayde, prestou tantos e tão relevantes serviços à nossa Academia.


Dedico este artigo a esses maîtres à penser, que são muito cultivados na França, como personalidades dotadas do carisma weberiano. É bem verdade que não vemos na atual intelectualidade francesa, neste começo de terceiro milênio e na sua perspectiva, senão uma grande e extensa, quase infinita planície cinzenta, onde todos se confundem, inclusive os falsos intelectuais. Mas foi lá, na França, que fomos buscar o modelo dos líderes culturais, para, no Brasil, procurar imitá-los.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 29/09/2004

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 29/09/2004