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Rio, medalha de ouro

 

Foi desde sempre o mar. Foi esse mar que desde sempre acaricia as costas do Rio, que insiste em chamar essa cidade de linda, foi esse mar que invadiu o gramado do Maracanã para inaugurar a noite mais esplendorosa que a cidade já viveu. Não, não é um exagero, não há que subestimar o que se passou na noite de 5 de agosto na abertura dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. 

Nessa noite, o povo brasileiro tinha um encontro marcado consigo mesmo. Na véspera, Lars Grael carregou a tocha sem muletas, o que lhe custou um trabalho de meses; o grande Ivo Pitanguy, algumas horas antes de morrer, quis emprestar à tocha a energia benfazeja de suas mãos de escultor. Zagallo também, ambos idosos e doentes. No dia seguinte, Gilberto Gil saindo do hospital, convalescente, subiu ao palco e cantou para bilhões de espectadores. Brava gente brasileira.

Gisele Bündchen, uma deusa dourada que pisou com passo firme e leve a mais longa e difícil passarela de sua vida, contou que antes, em sua carreira, quem desfilava era só ela, mas ali não, ela era todos nós. E que pedira aos céus proteção para não errar. Todos que estiveram em cena foram, ali, o Brasil.

Paulinho da Viola, o menino mulato e pobre da Portela, abriu alas para o Brasil passar cantando o hino que será para sempre o verdadeiro balanço da nação brasileira. Esse o milagre dessa noite encantada: o nós que emergiu da emoção coletiva, no reconhecer-se nos mesmos símbolos e na mesma história, nas mesmas músicas e poemas, nos mesmos ritmos, na voz inconfundível de Fernanda, no “País tropical” do Benjor, na “Construção” de Chico. Na nossa cultura, esse patrimônio comum de artistas e anônimos. Nós, os brasileiros.

Nós que não somos uma potência econômica, que não somos uma potência militar, que não somos super atletas, nossa única força, imbatível, é justamente a cultura. O que os políticos nunca descobriram — et pour cause — mas sabem os artistas e sabe o povo que é o verdadeiro autor dessa festa. 

O Brasil é uma potência cultural, o que ignoravam todos os que anunciaram, antes do tempo, só catástrofes e fracassos. Os que olham com desconfiança e soberba os países pobres e mestiços, supostamente desorganizados e incompetentes, roídos por todos os vícios que seus detratores são incapazes de reconhecer em si mesmos. Foi essa potência cultural que recebeu com exuberante alegria e talento os olhos do mundo todo. 

Naquela noite o Brasil não foi o país de fulano ou beltrano, ocupantes transitórios de palácios, foi essa terra muito antiga, onde vive uma gente original, sedimentada por séculos de miscigenação, exemplo da diversidade que se fez identidade — o que é tão difícil para outros povos — que se gerou a si mesma e se está gerando, ainda, e que conhece bem “a dor e a delícia de ser o que é”.

O que vivemos não foi o sonho de uma noite encantada que logo ali adiante vai esbarrar na aspereza dos conflitos, às vezes do ódio, e acordar em pesadelo. Foi um reencontro com o melhor de nós mesmos, uma lembrança de para onde devemos olhar quando o pessimismo e a baixa estima voltarem a nos afligir ou quando acreditarmos que podemos ser inimigos. Não somos. Somos um povo que enfrenta divergências e mágoas, problemas bem mais solúveis do que os que desafiam hoje outros povos da Terra.

Nosso país não é nenhum paraíso e todos sabem disso. Vive um momento particularmente dramático. Mas olhar somente para tudo que nos falta é uma injustiça e um masoquismo que não ajuda o país a ser melhor nem a nós a sermos mais felizes.

No gramado do Maracanã submerso por um mar de cores e ritmos, da bateria das escolas de samba emergiu a multiplicidade de que somos feitos, a fraternidade de que somos capazes, a alegria que vem Deus sabe de onde, o muito que sonhamos para nós mesmos e que estamos longe de realizar, mas que existe na cultura como desejo e persiste como horizonte. Como os verdejantes anéis olímpicos e as sementes que os melhores atletas do mundo, gente forjada no esforço, na persistência e na excelência, vão deixar plantadas no nosso chão. Esforço, persistência e excelência.

O Rio de janeiro continua lindo, o Rio de Janeiro continua sendo, sendo essa fonte de criatividade que espelhou a cultura brasileira com impecável fidelidade e refundou uma autoestima que andava perdida em um povo desencontrado. Foi pela linguagem da arte e da beleza que os brasileiros voltaram a cantar em coro o orgulho de si mesmos, se fizeram escutar e o resto do mundo ecoou.

O Rio de Janeiro ganha, por tudo isso, a mais merecida Medalha de Ouro.

O Globo, 13/08/2016