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Rescaldo de 64

 

Quando do quadragésimo aniversário da revolução de 64, houve muitas manifestações de expressivas figuras que dela participaram, destacando-se o magnífico depoimento do caro amigo Ruy Mesquita.


Isto não obstante, muitas questões ficaram lacunosas ou obscuras exatamente em pontos sobre os quais posso prestar depoimento pessoal, em virtude de, na época da deposição do presidente João Goulart, estar ocupando o alto posto de secretário da Justiça do Estado de São Paulo.


A grande lacuna que observei, nas exposições feitas, foi a falta de referência ao papel desempenhado, nesse evento, pelos então governadores de Estado que se opunham aos propósitos de Jango, como é o caso de Adhemar de Barros, Carlos de Lacerda, J. Magalhães Pinto, Ney Braga e Ildo Meneghetti, na época à testa, respectivamente, dos governos de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul.


Constitui erro histórico gravíssimo a afirmação de que os referidos governadores não teriam tomado parte decisiva no processo revolucionário (ou contra-revolucionário, se quiserem) que culminou com a fuga do presidente para o Uruguai, e a implantação de inesperado regime militar, com a suspensão das garantias constitucionais, muito embora o Congresso Nacional não tivesse sido dissolvido, mas declarado em absurdo recesso.


O chefe militar mais atuante na oposição a João Goulart, e que mais conspirava no sentido da salvaguarda da democracia - ameaçada pelos líderes esquerdistas, Luís Carlos Prestes inclusive -, era o general Cordeiro de Farias, que mantinha pessoal contato com Adhemar de Barros, que lhe garantira o apoio da Força Pública estadual. Participei de encontros entre Adhemar e aquele comandante e o general Nelson de Melo, os quais consideravam desastrosa qualquer iniciativa estadual antes de decisão das Forças Armadas nacionais. Daí ter Adhemar ficado em expectativa - e não "em cima do muro", como se disse injustamente -, limitando-me eu, em freqüentes entrevistas, a fazer a defesa da autonomia paulista contra as sucessivas ameaças formuladas por Abelardo Jurema, então ministro da Justiça.


Momento relevante na relação dos governadores foi o entendimento, em junho de 1963, de Adhemar com Carlos Lacerda, quando este veio a São Paulo a convite dos estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco para falar sobre a preservação da democracia.


Mais tarde, quando o general Olympio Mourão Filho audaciosamente sublevou a região militar sob seu comando, marchando para o Rio de Janeiro, mais uma vez aqueles generais aconselharam Adhemar a não se precipitar, até decisão do general Amaury Kruel, no comando da região militar de São Paulo, que, a final, optou pelo movimento, deixando a Adhemar a administração do Estado.


Note-se que era desejo dos governadores o afastamento de João Goulart, mas sem abandono do Estado de Direito, o que, infelizmente, não prevaleceu, quando a decisão final coube aos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, que preferiram editar o primeiro ato institucional, que iria ser seguido por outros, implantando-se a ditadura.


O mais violento desses atos foi o AI-5, baixado pelo presidente Costa e Silva e seus ministros, dele discordando apenas o vice-presidente Pedro Aleixo.


O certo é que foi o próprio Costa e Silva que, superadas as insurreições de 1968, houve por bem rever sua posição, nomeando para tal fim, em maio de 1969, sob a presidência de Pedro Aleixo, uma denominada "Comissão de Alto Nível", à qual tive a honra de pertencer, encarregada de fazer a revisão da Constituição de 1967.


Reunidos em Brasília durante uma semana, sempre com a presença de Costa e Silva, foi-nos possível apresentar um texto constitucional que restabelecia o Estado de Direito, nele ficando constando um dispositivo pelo qual os atos institucionais poderiam ser revogados, a qualquer momento, por decreto presidencial.


A bem da verdade, devo declarar que me surpreendeu favoravelmente a participação pessoal de Costa e Silva, dando apoio a medidas visando a equilibrado relacionamento entre os Poderes do Estado, e acolhendo solução que preservava, com a maior proporcionalidade possível, o número de deputados que deveria caber a cada Estado com base no respectivo eleitorado, antiga pretensão de São Paulo.


Devo também afirmar que, em conversa comigo, deu-me ele a conhecer seu propósito de restabelecer o regime democrático no mais breve tempo possível.


Igual declaração fizera ele ao caro amigo ministro Jarbas Passarinho, quando governador do Estado do Pará, consoante confissão constante do artigo que escreveu para O Estado de S. Paulo sobre o movimento de 1964.


Infelizmente, um derrame cerebral impediu Costa e Silva de determinar a volta progressiva do País à democracia, como narro no segundo volume de minhas Memórias (A Balança e a Espada), que publiquei, em 1987, pela Editora Saraiva. A meu ver, tal acontecimento figura entre aqueles que vêm alterar, imprevistamente, o sentido da História.


Efetivamente, de acordo com a Constituição de 1967, o vice-presidente Pedro Aleixo devia ter assumido a Presidência da República, mas a chamada "linha dura", imperante no seio das forças militares, o destituiu de suas funções, implantando uma Junta representativa da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, que declarou em pleno vigor o AI-5, sendo nomeado novo presidente o general Emílio Garrastazu Médici.


Por aí se vê como se desenvolvem os fatos históricos, e como o acaso, o azar, um acontecimento imprevisto, pode subverter substancialmente a direção dos acontecimentos, submetendo uma nação, por largo tempo, a duras experiências.


 


O Estado de São Paulo (São Paulo) 08/05/2004

O Estado de São Paulo (São Paulo), 08/05/2004